quinta-feira, 1 de junho de 2017

DIRETAS OU INDIRETAS: DE QUE DEMOCRACIA ESTAMOS FALANDO?



O debate atual sobre eleições diretas ou indiretas no caso da saída de Temer nos remete a uma pergunta que não é nova, mas continua central: a democracia que buscamos deve ser de caráter representativo ou participativo?

Dois dos principais pensadores da teoria política clássica, John Locke e Jean-Jacques Rousseau são referências desses modelos.

Para Locke [1], a democracia se aperfeiçoa na legítima representação pelo parlamento dos interesses da coletividade. É um autêntico parlamentarista envolto em uma tenaz disputa entre a monarquia e a nascente burguesia inglesa que surgia e se consolidava na Inglaterra no século XVII. A sua posição é claramente favorável ao poder político parlamentar em contraposição ao poder político monárquico, de modo que para ele a população deveria escolher livremente um grupo de cidadãos que a representaria politicamente no parlamento, legislando em nome do interesse comum. Uma vez eleito o parlamentar estaria legitimado, por delegação, a legislar, ainda que, amiúde, em desacordo com a vontade popular. O direito de insurgência seria legítimo apenas quando o legislativo deixasse de cumprir os fins para os quais foi eleito ou ofendesse as leis naturais, atentando contra a propriedade, a liberdade, a vida, etc. A esse modelo chamamos democracia representativa.

Rousseau [2], por seu turno, defendia que a soberania não pertencia ao parlamento, mas sim ao povo, de sorte que apenas o povo estava legitimado a decidir o seu próprio destino através da chamada vontade geral (interesses comuns), em contraposição à vontade de todos (soma dos interesses privados de cada um). A soberania popular é irrenunciável, e em assim sendo, não pode ser transferida para o parlamento.

A vontade geral seria portanto o limite da representação, considerada a impossibilidade de estar constantemente o corpo social reunido para decidir. Isso significa que o representante não está legitimado para decidir em nome do povo pela mera delegação do poder que lhe foi atribuído, mas, ao contrário, só estará legitimado na medida em que decidir tal qual os representados decidiriam se estivessem reunidos para decidir. A legitimidade, assim, não é uma condição dada, mas está em constante construção, em constante legitimação.

A nossa Constituição de 88 é majoritariamente “lockeana”, ou seja, voltada para a tese do poder delegado. A brecha aberta para o modelo de Rousseau está no parágrafo único do artigo primeiro, quando se define que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" [3]. O problema é que este é justamente o dispositivo constitucional que é atacado pelos opositores da democracia participativa de matriz “roussoreana”, vez que veem no parlamento brasileiro uma legitimidade automática dada por delegação, não mais sendo passível de ser contestada – é a ideia de legitimidade pensada pelo viés estritamente formalista e normativista, desconsiderando o seu conteúdo material.

O professor Paulo Bonavides já alertava no seu emblemático livro "Teoria Constitucional da Democracia Participativa" [4] que os instrumentos de participação popular nas decisões políticas do país, embora previstos na Carta Magna (plebiscito, referendo e iniciativa popular) [5] são sempre desprezados e escamoteados em nome do monopólio do poder decisório do Congresso.

A questão atual, portanto, não difere, na sua essência, do debate levado a cabo pelos pensadores contratualistas e iluministas: quem deve decidir as questões cruciais de interesse comum, o conjunto do povo ou um pequeno grupo legitimado por delegação para decidir em seu nome?

Você confia que os representantes do povo irão decidir tal qual o povo decidiria se estivesse em seu lugar, ou é melhor não confiar e devolver ao conjunto da sociedade a soberania e, por via de consequência, o direito de decidir o seu próprio destino?

Responda objetivamente, sem indiretas!

isaac Luna

[1] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2004 (Coleção Obra Prima de Cada Autor).

[2] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e Outros Escritos. São Paulo: Cultrix, 1999.

[3] CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição .

[4] BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. 2 ed. São Paulo: Melheiros, 2003.

[5] CAPÍTULO IV - DOS DIREITOS POLÍTICOS
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;

III - iniciativa popular.

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