sábado, 28 de janeiro de 2017

O JUÍZO FINAL

O fato de Facebook e o WhatsApp terem se tornado maquinas de julgamento sumários e sentenças condenatórias das mais duras é apenas um sinal, uma das características de um ambiente social em plena degeneração ética e democrática.

Como responderíamos se fossemos perguntados de onde vem os elementos para esse julgamento, quais são as provas, as evidencias? Os juízes conhecem o caso, ouviram o contraditório? Ou estamos nós diante do puro exercício do desejo de vingança contra qualquer um para satisfazer os sentimentos reprimidos de injustiça, insegurança, culpa e desejo de superioridade moral?

A despreocupação com a verdade, com a comprovação do que se defende ou acredita parece está se tornando regra. Matérias jornalísticas, ou pior, posts de blogs suspeitos e opiniões de pessoas sem qualquer ligação profissional ou acadêmica com o assunto passam a ser replicados como verdades absolutas, incontestáveis, de modo que os que se atrevem a lançar dúvidas sobre os critérios usados para a imposição da sentença são imediatamente acusados de cumplicidade, motivação por interesse pessoal, ou doutrinação partidária. Pensar, refletir, questionar, ponderar, principalmente acerca dos pontos de vista da grande imprensa tornou-se algo subversivo na pátria amada Brasil, ou melhor, voltou a ser coisa de comunista, de gente que deve “ir pra Cuba”, tal qual ocorria nos anos de regime militar, não tão distantes assim.

Nessa pisada, o jornal britânico Financial Times publicou no último dia 10 de Janeiro, uma matéria especial sobre o crescimento do neonazismo no Brasil, apontando a ascensão de figuras como Jair Bolsonaro e de movimentos de extrema-direita como algo simbólico – e ao mesmo tempo preocupante – no cenário de crise pela qual passa o País.

O fato é que, se a história pode nos ensinar algo, a crescente ojeriza ao pensamento contrário (que é a essência mesmo da democracia), a intolerância nas suas mais diversas manifestações (há, no contexto atual, até o ressurgimento de movimentos separatistas!), e a prevalência de discursos moralistas (qual a moral dominante? A moral de quem?), formam um ambiente propício para a reedição de capítulos históricos que se pensava fora de cogitação.

Os julgamentos sumários e de exceção das redes sociais, quase sempre revelando o desejo de extermínio do outro (Sartre estava certo, “O inferno são os outros”?), são apenas a manifestação mais visível de uma subjetividade valorativa dominante no seio social (Nietzsche estava certo: “O único cristão morreu na cruz”?).

O passado pode está bem ali na nossa frente, encoberto por uma cortina de fumaça sustentada pela opinião ensimesmada, o desejo de superioridade moral e a incapacidade de conviver com o diferente.

O nazismo alemão, o fascismo italiano, ou mesmo os regimes militares da América Latina, incluído o brasileiro, contaram com apoio popular para se manterem pelo longo período que se mantiveram, embora hoje, ou mesmo logo após as suas derrocadas, os seus apoiadores populares tenham sumido, como se nunca tivessem existido, como se tudo aquilo tivesse sido um absurdo e uma pura violência imposta a sociedade. A história é assim: quando a cortina de fumaça vai se esvaíndo, os apoiadores dos regimes moralistas e intolerantes tendem a se recolher no anonimato ou a negarem suas certezas naquele momento.

Iremos esperar o tombo para nos recolher, ou, abrir os olhos no nevoeiro e evitar o retrocesso que bate a nossa porta?

Reflitamos!
Isaac Luna

*A charge que ilustra o post é conhecida, assinada pelo famoso cartunista TigreEndereço eletrônico da imagem: https://lh3.googleusercontent.com/-avtAd-tUTdA/VaAnkrUgMzI/AAAAAAAAg5g/YVcw6kbDpZo/w800-h800/11403306_301678903289804_2711804148986508581_n%255B1%255D.jpg


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O BALAIO DE TUBARÕES DA POLÍTICA BRASILEIRA: É POSSÍVEL VIRÁ-LO? (Re-postágem)

A delação da odebrechet, que implica um número razoável de políticos dos mais variados partidos, cria o campo adequado para o que poderíamos chamar, em uma análise política com tempero nordestino, de teoria do balaio. O que é isso, como funciona esse raciocínio?

Antes é preciso confessar que uma parte da inspiração desse post vem de um fantástico e conhecido texto de Bertolt Brecht intitulado "Se os Tubarões Fossem Homens?", uma alegoria sobre o  poder ocorrida no fundo do mar (1).

Então vamos lá:

Quanto mais cheio o balaio e, principalmente, quanto mais cheio com peixes graúdos, mais pesados (os ditos "tubarões"), mais difícil torna-se de virá-lo.

- Por que?

A improvável tarefa de virar o balaio sem derrubar todos os peixes, ou a sua maioria, ou os maiores, faz com que se busque alternativas de não virá-lo, criando um campo de proteção que deixe espaço apenas para cair alguns peixes que estão pelas beiradas e podem cair sem que o balaio precise ser virado. A estratégia é permitir apenas algumas sacudidas no balaio para que caiam peixes de menor porte ou, mesmo alguns de grande porte mas já sem força nas nadadeiras ou trânsito livre com os tubarões-chefes, aqueles que estão nos postos de comando. Com isso se  evita ou minimiza a níveis controláveis a crítica de que "não deu em nada", que a Justiça não pune os poderosos, que “tá tudo dominado!”, etc.

Algumas cabeças precisam rolar para que tudo acabe bem, ou, como diria Tomasi di Lampedusa em uma das grandes obras da literatura universal, intitulada O Leopardo: "Algo deve mudar para que tudo continue como está" (2).

Tenciona-se, em razão disso, a que Peixes que nadam em águas diferentes, que são a princípio adversários, busquem um acordo para que o balaio seja mantido de pé.

Aqui reside a tese: Quanto mais peixe graúdo dentro do balaio, mas difícil de vira-lo. Quanto mais gente influente, de um número maior de partidos e do mundo empresarial estiverem envolvidos nas denúncias e delações, mas difícil que elas prosperem a ponto de virar a mesa do poder.

Hoje o xadrez da virada do balaio passa por uma questão, ou mais especificamente, por um peixe bem determinado. Dito de forma direta: é possível que o Lula caía do balaio sem que isso implique a queda de outros grandes personagens? Ou: não virar o balaio implica também em não derrubar o Lula?

Os mais graúdos tubarões da política brasileira estão no balaio, ou prestes a entrar nele com a possível (ou não) homologação do último lote de delações da lava-jato, criando um peso enorme, que exigirá muita força para colocá-lo de ponta-cabeça.

Se ainda for possível considerar como válida a tese apresentada pelo cientista político Guilhermo O’Donnell como resultado de uma análise que já tem três décadas (3), ou seja: a de que o Brasil é um país cômodo para os políticos em razão da contunde ausência de uma sociedade civil politicamente organizada que possa fazer pressão contrária aos interesses endógenos dos "Donos do Poder" (pra não esquecer Faoro), o balaio, ou a mesa na qual está o banquete do poder, tente a não virar.

Os movimentos das próximas semanas serão cruciais para essa definição. É aguardar com atenção para ver para onde correrão as aguas, sem perder de vista, nunca, o que nos diz o escritor e poeta russo Maiakóvski: “O mar da história é agitado...” (4).


(1)   LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O LEOPARDO. Editora Dom Quixote: Lisboa, 2014.

(2)  BRECHT, Bertolt. Se os tubarões fossem homens. In:  Histórias do Sr.  Keuner.  Madri.  Alianza  Editorial.  p.  27-29.


(3)  O’DONNELL, Guilhermo. Hiatos, Instituições e perspectivas Democráticas. In: A Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. REIS, Fabio Wanderley; O’DONNELL, Guilhermo (org). São Paulo: Vértice, 1988. 

(4)   MAIAKÓVSKIVladmir. E ENTÃO, QUE QUEREIS?.... Rússia. 1927:

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.

Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo, mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?

O mar da história é agitado.
As ameaças e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio, cortando-as 
como uma quilha corta as ondas.



*Imágem ilustrativa capturada de cena do filme Procurando Nemo (Pixar- Disney, 2003)

sábado, 21 de janeiro de 2017

PELOS ARES: O RISCO DE VOAR ALTO NA POLÍTICA BRASILEIRA

Acidentes aéreos acontecem, isso é um fato. Políticos e empresários, como pessoas com volume de deslocamento acima da média são pessoas que estão expostas a essa realidade e podem morrer em quedas de aeronaves, também é fato.

Ocorre que, por algum fenômeno que a ciência aeronáutica não desvendou ainda e para o qual os futurólogos ou a roda da sorte, ou do destino, ou da fortuna (como diria Maquiavel), não tem explicação, no espaço aéreo brasileiro essa probidade aumenta em proporções gigantesca em relação a qualquer outro lugar planeta terra.

Então vamos lá:

Em 18 de julho de 1967 o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco sai do sítio da amiga e escritora Rachel de Queiroz na cidade de Quixadá com destino a Fortaleza em um avião cedido pelo governo do Estado do Ceará. Trinta minutos depois um jato da FAB bate a asa (do lado em que o tanque de combustível estava seco) no avião do ex-presidente que cai e provoca a sua morte (o jato da FAB não sofreu maiores avarias). Os laudos indicaram que se tratava de um acidente e o caso foi encerrado.

OBS: Não vamos tratar da morte de JK (22 de agosto de 1976), que foi em um “triste e fatídico acidente rodoviário”, nem da de Tancredo (21 de abril de 1985), que além de não ter sido no ar, foi por “causar naturais”.

O então ministro da Reforma Agrária, uma das questões de maior conflito na Assembleia Nacional Constituinte envolvendo movimentos sociais e latifundiários, o pernambucano Marcos Freire, findou-se em 8 de setembro de 1987 na misteriosíssima explosão do avião em que estava em viajem oficial no sul do Pará, uma das áreas de maior conflito no campo fundiário no Brasil até hoje. Freire era favorável a reforma agrária mais ampla e estrutural.

Na noite de 12 de outubro de 1992 o “homem da Constituição Cidadã” e um dos principais articuladores do impeachment do ex-presidente Fernando Collor,  o Deputado Ulysses Guimarães, morreu na queda do seu helicóptero particular em Angra dos Reis. Não há registro de comunicação da aeronave com nenhuma torre, nem dos tripulantes com familiares ou amigos. O corpo do “Dr. Ulysses” nunca foi encontrado.

No dia 13 de agosto de 2014 o ex-governador de Pernambuco e forte concorrente ao Palácio do Planalto naquele ano, Eduardo Campos, morre na impressionante queda do avião particular em que estava, em plena área residencial de Santos-SP. Viajando em uma aeronave considerada excelente por especialistas, com um piloto experiente no comando, Campos saiu de cena em meio a depoimentos de testemunhas falando em bola de fogo, denúncias de corrupção, incertezas sobre a propriedade e origem dos recursos que financiavam o avião e uma candidatura que era considerada promissora por diversos analistas políticos, contado para, no mínimo, está no segundo turno daquelas eleições.

Em 11 de novembro de 2015 um “acidente” com jato particular de fabricação americana com todas as licenças em dia e voando em tempo aberto e condições favoráveis, mata o presidente da Bradesco Seguros, Marco Antônio Rossi, e o presidente da Bradesco Vida e Previdência, Lucio Flávio Conduru de Oliveira, ambos fortíssimos candidatos a assumirem a presidência do banco. A queda do avião ocorre em meio a denuncias e investigações envolvendo o Bradesco em escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro. Oito meses após o ocorrido a Justiça Federal em Brasília aceitou denúncia contra o diretor-presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, e mais nove pessoas na Operação Zelotes.

O presidente da mineradora Vale durante 10 anos, Roger Agnelli, despediu-se dessa existência em 19 de março de 2016, quatro dias depois de enviar uma carta a então presidente Dilma Rousseff denunciando desvios na empresa. O avião particular no qual estavam Agnelli e sua família decolou do Campo de Marte em direção ao aeroporto Santos Dumont e, instantes depois se chocou com uma casa a cerca de 200 metros da cabeceira 12 do aeroporto, explodindo e matando todos.

Após instituir uma força-tarefa durante o recesso e de antecipar a volta das férias para homologar as delações da lava-jato e quebrar o sigilo de mais de 900 depoimentos, o ministro relator operação no STF, Teori Zavascki, morre em um acidente com avião particular que cai no mar de Paraty. No dia seguinte o ministro chefe da casa civil da presidência da república diz que com a morte do ministro o governo “ganhou tempo” e Jornal da Globo News diz que o mercado amanheceu mais confiante (em razão da morte).

O post, esclareça-se, é meramente retrospectivo, sem condão de denúncia. Mas, inegavelmente, o seu conteúdo tem caráter provocativo, busca atiçar o pensamento e a reflexão mais cuidadosa sobre o peculiar fenômeno brasileiro da seletividade cirúrgica dos passamentos em razão de “acidentes aéreos”. 

Registre-se, por fim: em nenhum dos casos descritos no post há réus – a não ser o mau tempo, a fatalidade e o destino.

É prudente, nesse caso, pensar bem antes de buscar voos mais altos na política em terras, ou melhor, em ares brasileiros...

Isaac Luna 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

CONFIRMADA A MORTE DE ZAVASCKI, RELATOR DA LAVA-JATO NO STF.


Confirmada pelo Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro a morte do ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava-Jato no STF, em acidente com avião de pequeno porte que caiu na tarde de hoje em  Paraty.

A expectativa era de que em algumas semanas o ministro homologasse o conteúdo das 77 delações da Odebrecht, implicando políticos conhecidos de vários partidos e empresários.

Pela forma como Zavascki vem atuando, era também dada como cerca a quebra de sigilo dos mais de 900 depoimentos logo após a homologação, conforme requerido pelo procurador geral Rodrigo Janot.

Duas questões agora se colocam no topo da curiosidade e expectativa de todo o país:

a) Quais as "causas" do acidente?
b) Qual o "destino" da lava-jato no STF?

Como diz o também ministro Marco Aurélio: "Vamos aguardar".

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A GLOBO RENDEU-SE AS EVIDÊNCIAS? A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA DE COMBATE ÀS DROGAS E O CAOS PENITENCIÁRIO

Diante do caos nos presídios, cuja a causa mais evidente está ligada à ultra-super lotação, a Rede Globo, surpreendentemente, começa a aderir ao discurso feito a anos, dias após dias, por pesquisadores e professores de Sociologia, Direito, Antropologia, Ciência Política e áreas afins no que diz respeito à política criminal de combate às drogas adotada pelo sistema de justiça criminal brasileiro.

Os dados do DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional, apontam que aproximadamente 1/3 de todos os presos estão encarcerados por condenação ou mesmo por mera suspeita de tráfico de drogas, na sua sufocadora maioria jovens negros, favelados e de pouca escolaridade, sem condenações anteriores e sem histórico de ligação com o crime organizado. Uma vez encarcerados, viram peças fáceis de recrutamento das facções criminosas que dominam o ambiente interno das penitenciárias e presídios nos quatro cantos do País. 

Se consideramos o caso das mulheres, mais da metade da população reclusa está nessa condição por envolvimento com o tráfico, quase sempre por influência dos companheiros.

Contudo, é importante destacar que não se trata apenas de uma questão legal, já que a nossa Lei de Tóxicos (11.343/06), já determina no seu art. 28 que aos usuários não se aplica pena privativa de liberdade, seja reclusão ou detenção. A questão é, sobretudo, da lógica do encarceramento prisional que predomina na sociedade e, não muito diferente, no seio dos operadores do Direito. Em razão disso, a interpretação é predominantemente no sentido de que o portador da droga (jovem negro, favelado...) é traficante - interpretação que tende a mudar somente quando o portador da droga é branco, de classe média alta, escolarizado e morador do asfalto, mais um dos muitos privilégios de classe que compõem o cenário da organização sociopolítica brasileira.

Esse é um debate muito longo, com muitas outras variáveis, mais o fato da Rede Globo começar a destinar espaços privilegiados do seu jornalismo para questionar o modelo adotado e suas consequências, ouvindo especialistas, plantando dúvidas, tende a ser um sinal na mudança do pêndulo da opinião pública, já que o comentário de Chico Pinheiro, Willian Bonner, Evaristo Costa  e Cia, costumam ter mais importância do que a fala de professores e pesquisadores que dedicam anos de estudo ao tema.

O momento talvez seja propício para iniciarmos um debate mais científico e menos moralista sobre a difícil questão das drogas, como se diz na telinha: coragem... então, a gente se vê por aí!
                                                                                                                                                Isaac Luna

*Endereço eletrônico da imagem ilustrativa: http://glaucialima.com/wp-content/uploads/2014/01/presidio4.jpg

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O TRIBUNAL POPULAR E A CONDENAÇÃO DA CRIMINALIDADE


"Bandido bom é bandido morto", proclama o cidadão de bem numa rede social enquanto comemora a morte cruel e violenta de pessoas que estavam em penitenciárias, com ou sem condenação, talvez sem perceber que a sua atitude constitui o crime de Apologia de Crime ou Criminoso que está no Código Penal (CP) no art. 187.

"Escolheu o crime porque quis, agora aguente as consequências", diz outro cidadão numa conversa com amigos na casa de praia, despreocupado com a hora, pois conseguiu com um parceiro gente boa um atestado para só voltar ao trabalho na quarta-feira, crimes previstos no CP como Falsidade de Atestado Médico (amigo gente boa) e Uso de Documento Falso (ele), artigos 302 e 304, respectivamente.

Comendo uma pizza com os irmãos e irmãs em Cristo, após o culto ou a missa, diz a senhora pensativa: "antes eles do que a gente, que somos pessoas boas". A pizza será paga com o dinheirinho extra da restituição do imposto de renda, conseguido graças a umas declarações de gasto com saúde providenciadas por uma irmã caridosa que trabalha na administração de uma clínica médica, ambas, nesse caso, sujeitas ao que dispõe o art. 299 do CP - Falsidade Ideológica e aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei 8.137/90 - Crimes Contra a Ordem Tributária.

Do conforto do quarto e usando um notebook com programas pirateados (Crimes Contra a Propriedade Intelectual de Programas de Computador, Lei n. 9.609/98), o jovem revoltado com a criminalidade diz no seu Snapchat que torce por mais mortes, pra diminuir a criminalidade.

No debate caloroso em sala de aula o estudante de direito que não paga os direitos trabalhistas da funcionária doméstica, Ilícito previsto na Lei Complementar n. 150/15,  e está com o carro estacionado na vaga reservada a deficientes (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, n. 13.146/2015 cumulada com art. 181 do Código Nacional de Transito), diz que "a culpa é dos direitos humanos", sendo imediatamente apoiado por uma colega que está usando roupas de uma grife que usa Trabalho Escravo (arts. 149, 197 e 2017 do CP) na sua linha de produção e por outro que acabou de entregar um trabalho ao professor sobre dignidade da pessoa humana copiado da internet, o que, de acordo com o art. 184 do Código Penal configura o crime de Violação de Direito Autoral, na modalidade Plágio.

Na coluna de opinião do leitor, na edição de domingo do jornal, o ativista de uma ONG que é contra o aborto porque luta em defesa da vida, diz que "tem mais é que matar mesmo, não tinha nenhum santo ali", incorrendo no delito do art. 286 do CP - Incitação ao Crime - e nesse caso, crime contra a vida!.

Indignado com os advogados de defesa que "defendem bandidos", o cara que toma na sua varanda um uísque que comprou sem nota, pela metade do preço de mercado, de uns caras que não querem aparecer (crime de Receptação, previsto art. 180, CP) diz que "esses advogados são criminosos também, participam do crime, enricam com a bandidagem", fala contaminada com os  elementos de Injúria, Calúnia e Difamação, todos crimes previstos no Código Penal nos arts. 138, 139 e 140.

A moça que ofereceu R$: 100,00 a um guarda de trânsito (Corrupção Ativa, art. 324, CP) para não ser autuada por Dirigir Sob a Influência de Álcool, crime previsto no art. 306 do Código Nacional de Trânsito, desabafa na sua conta do Twitter: "É um alívio para a sociedade, quanto menos criminosos, melhor!".

Assistindo o noticiário de mais uma rebelião numa penitência, graças ao sinal da TV a cabo que conseguiu puxar de um vizinho (Furto, na modalidade do parágrafo 3o do art. 155), o atento telespectador torce para que o número de criminosos mortos seja maior do que na anterior: "vamos bater o recorde, pelo menos 100 dessa vez!".

Feliz porque está conseguindo comprar o seu remédio tarja preta sem receita médica, o que segundo o art. 33 da Lei 11.343/06 é crime de Trafico de Drogas, a mulher diz a uma vizinha amiga que alicia garotas para o comércio sexual (Favorecimento a Prostituição, art. 228, CP), que "É um alívio pra a sociedade, ninguém aguenta mais tanta impunidade!".

Entre um vídeo e outro com Pornografia Infantil que repassa nos grupos de WhatsApp para a galera, crime previsto no art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, o universitário desenrolado comenta: "Tão vendo aí pessoal, tem mais cabeça de vagabundo rolando numa rebelião, vamo tomar uma pra comemorar?".

Indignados com as pessoas que questionam se a execução violenta é um método desejável ou eficaz para combater a criminalidade, o cara que ganha a vida com Fraudes a Licitações, crime previsto entre os arts. 89 e 98 da Lei 8.666/93 e o amigo que joga pedra no terreiro de candoblé que tem na sua rua (Atentado Contra a Liberdade Religiosa, art. 208 do Código Penal) dizem com ar de autoridade moral: "Tá com pena, leva pra casa!"

Na volta pra casa, conversando com o amigo sobre as rebeliões, diz o cidadão que vendera o seu voto por R$: 50,00 nas últimas eleições: "A culpa é dos políticos!".

E assim termina mais um dia na Terra de Santa Cruz, com os justos comemorando a decapitação dos injustos.

Isaac Luna


URL da imagem e clip da musica Tribunal Popular, do Mano Márcio:https://www.youtube.com/watch?v=hzd6ebT3en0

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

CRIME SEM CASTIGO: CASAL FAZ SEXO A VISTA DO PÚBLICO NA ORLA DE FORTALEZA


Poucas notícias foram tão comentadas nos últimos dias como a do casal anônimo que protagonizou cenas de sexo explícito, ao vivo e a cores, em um hotel na orla da capital cearense. Ao deixarem as luzes acesas e as cortinas abertas num cômodo com faixada frontal de vidro, levaram as pessoas que passavam pelo local ao delírio.

Se o fato for analisado ao pé da letra, estaríamos diante do crime de Ato Obscenos, descrito no art. 233 do Código Penal da seguinte forma: "Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa."
No caso em comento, estaríamos diante do ato obsceno praticado em lugar privado (hotel), porém, exposto ao público, já que dava visibilidade a um número indeterminado de pessoas que passavam pela via pública.

Entretanto, para que haja a configuração do crime é preciso que ocorra  a ofensa ao bem juridico protegido pela norma penal, que nesse caso é a "moral sexual pública". Analisando pelo vídeo viralizado nas redes sociais, não fica claro o sentimento de ofensa por parte de quem presenciava o ato, não sendo possível, em tese, se falar na agressão ao sentimento de pudor, a moral sexual da sociedade. 

É evidente que isso não significa que as pessoas podem sair por ir fazendo sexo em logradouros públicos, mas sinaliza, talvez, que a moral sexual ou o pudor público encontram-se bem flexíveis nos dias atuais, sendo cada vez mais difícil condenar como criminosas pessoas nesses casos.

O Direito Penal não só regula, mais é sobretudo determinado pela moral social predominante em cada época e, quando se trata de um valor tão contingente e aberto como a moral sexual, as interpretações são, sempre, muito delicadas. Normas penais demasiado abertas, enfim, tendem sempre a gerar o que se convencionou chamar de insegurança jurídica.

E você, o que pensa sobre isso?


  1.  

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

"SÓ MORRERAM 89? ERA PRA TER MATADO MAIS!"



Uma das características mais intrigantes que envolvem o extermínio de presos nas penitenciárias de Manaus e Roraima é o volumoso apoio popular a carnificina. Falas e pronunciamentos de alguns agentes e "autoridades" públicas vão contribuindo para dar um tom de normalidade aos acontecimentos.

É claro que em uma democracia os indivíduos são livres para manifestarem as suas opiniões, não é disso que se trata. A questão que chama a atenção é especialmente definida pela defesa de ideias contraditórias e valores incompatíveis, fato que em um sistema lógico de raciocínio é classificado como incoerência.

São apenas dois os pontos tratados nessa breve reflexão, sendo um de caráter político-jurídico e outro de natureza ético-moral. Então vamos lá:

Em regra, as pessoas tendem a identificar o descumprimento da Constituição Federal como uma das causas da desordem social e do entrave ao progresso, valores máximos estampados no centro da nossa bandeira nacional (ordem e progresso). Portanto, é possível supor com um razoável juízo de probabilidade que as pessoas, em geral, desejam e defendem que a Constituição seja cumprida. Dito isso, e sendo certo também que a nossa Carta Magna consagra como direitos fundamentais a garantia da vida e a proibição de penas de morte, cruéis e degradantes, seria lógico e racional concluir que, aqueles que desejam e defendem o cumprimento da Constituição, desejam e defendem por consequência o cumprimento dos direitos e garantias que nela estão assegurados, como os exemplificados a pouco.

No outro lado dessa mesma moeda temos uma sociedade que declara-se majoritariamente seguidora dos ensinamentos de Jesus Cristo. Igrejas que professam obediência ao evangelho se multiplicam pelo país com um número cada vez maior de seguidores, elegendo, inclusive, inúmeros deputados, senadores e prefeitos nos quatro cantos do país. O código valorativo que rege essa multidão de indivíduos seguidores do cristianismo é o que se chama de ética cristã, campo moral que tem como pilares, dentre outros, os ensinamentos de amar ao próximo como a si mesmo,  não matar, não julgar e acreditar que somente o d'us* tem poder de decidir sobre a vida e a morte.

Não é demais repetir: o sistema democrático garante a liberdade como regra, inclusive de opinião, de ideologia e de consciência.

O que motiva o debate nessas poucas linhas, então, é exclusivamente a questão de observar se há coerência social e moral entre o que se diz defender e acreditar, e o que, na prática, se defende e se apoia nos casos práticos da vida real.

Um grande poeta da nossa geração dizia: "ninguém respeita à Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação...". Talvez seja hora de observarmos bem os valores predominantes em nossa sociedade para refletirmos se somos de fato aquilo que pensamos ou dizemos ser, afinal, como diz um dos ensinamentos que parece acreditarmos: tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém!
Isaac Luna


* A Palavra d’us foi grafada sem letra maiúscula e com o apostrofo (marcando a supressão da letra ‘e’)  para não incorrer na possível  incoerência de usar o santo nome em vão, conforme o terceiro dos dez mandamentos recebidos por Moisés.

URL da imagem: http://www.reporter-am.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Presos-mortos-rr.jpg

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

DIMINUIR SECRETARIAS GARANTE UMA GESTÃO MAIS EFICIENTE E DEMOCRÁTICA?



Há uma questão muito delicada omitida nos discursos da moda, levemente superficiais, que tratam da diminuição de secretarias nas gestões públicas como a grande estratégia para resolver o problema das finanças nas prefeituras.

É certo que existem casos determinados que merecem atenção em razão de exageros, mas no geral talvez não seja esse o grande problema.

Secretarias são espaços de gestão que tratam das políticas públicas específicas ou transversais de uma determinada área ou campo da vida social. Quanto mais plural, multicultural e complexa torna-se uma sociedade, mais necessário se faz o tratamento descentralizado dos programas, direitos e políticas públicas permanentes de cada campo, o que, a priori, demanda espaços específicos para a sua efetivação. Além disso, as secretarias são também vetores e  instrumentos de aproximação da gestão com a sociedade, de ampliação das possibilidades de participação popular nas tomadas de decisão dos governos através dos conselhos, das conferências, das relações institucionais com organizações sociais não governamentais, além de cumprirem o importante papel de articulação com Estado e União para otimização das políticas públicas setoriais.

Um ponto em paralelo que impõe um estudo mais aprofundado diz respeito ao real impacto da extinção de secretarias nas contas públicas, o que precisa ser tratado com maior prioridade por economistas especializados em finanças públicas, com números e comparativos.

Por enquanto a primeira questão é bastante para o debate, de modo que, se  a premissa inicial estiver errada, ou seja, se a sociedade atual não for complexa, plural e multicultural, talvez não haja motivo para maiores preocupações.

De outra banda, se for razoável supor que o problema apresentado é digno de atenção, temos que analisar com cautela o discurso onipotente e onipresente do "enxugamento da maquina", que mira preferencialmente nas pastas que tratam de políticas públicas sociais setoriais.

Os novos gestores municipais Brasil a fora, defensores dessa tática, precisam apresentar garantias à população de que o cantado e decantado "enxugamento da máquina" não seja um mero eufemismo para enxugamento de direitos, garantias e serviços, bem como não redunde na diminuição de canais democráticos de participação popular nos governos municipais.

É preciso dar tempo aos mandatários desse ciclo que se inicia para apresentarem serviços e resultados a população, mostrarem que a fórmula do "município mínimo" funciona e de que, na pior das hipóteses, não haverá retrocesso em relação às conquistas e avanços alcançados por luta e mobilização da  sociedade até o presente momento.

Aguardemos, democraticamente atentos!
Isaac Luna

*URL da imagem ilustrativa:​ http://www.pagina3.com.br/imagens/materia/txtmateria/eleicoes2016541.jpg



terça-feira, 3 de janeiro de 2017

A BARBÁRIE QUE NOS RONDA: QUEM SERÁ O PRÓXIMO?



A sucessão de tragédias que marcaram os últimos dias de 16 e os primeiros de 17, de que são exemplos mais midiáticos o extermínio do ambulante a mão crua no metrô (negro/favelado/travesti), a chacina familiar em Campinas (vadias/feministas/'ditadura dos direitos das minorias') e a carnificina no presídio de Manaus (presidiários/'bandido bom é bandido morto') não está fora do repertório das falas corriqueiras do cotidiano, ditas e propagadas inclusive por gente que se presume, pelo status sociocultural que ocupam, bem (in)formadas, bem como por pessoas que se autodeclaram democratas, republicanos e/ou cristãos.

O estado de barbárie não se instala automaticamente como um aplicativo de celular, ele precisa de um ambiente favorável para ir se instalado, se acomodando pouco a pouco. Requer, portanto, uma subjetividade que o respalde, uma aceitação prévia no campo dos valores que formam a consciência coletiva de uma sociedade, como bem diria o percursor da Sociologia Émile Durkheim No seu famoso "A Transfiguração do Político" Michael Maffesoli diz que é muito difícil o indivíduo se desvincilhar da ambiência do seu tempo, sendo fortemente influenciado pelo repertório valorativo/subjetivo do mundo que o cerca. Para ele “a transfiguração do político completa-se quando a ambiência emocional toma o lugar da argumentação, ou quando o sentimento substitui a convicção” - e isso se materializa ou se naturaliza no campo dos discursos!

Entre nós, discursos intolerantes, agressões verbais, racismos, preconceitos e maniqueismos regados pela crença simplista de uma suposta superioridade moral/social vão criando o ecossistema valorativo adequado para a normalização da brutalidade.

Fascistas, misóginos, racistas, ignorantes e intolerantes de todas as espécies vão se sentindo à vontade, confortáveis e, em alguns casos até autorizados a agir violentamente diante das manifestações de apologia à violência que se multiplicam nas mesas de bar, nas conversas em coletivos, nos bate-papos de rua e nas redes sociais.

O anti-intelectualismo, o desprezo à sociologia e a filosofia, o desinteresse crescente pela política e o ódio aos Direitos Humanos completam o roteiro de um filme que, olhando pelo retrovisor da história, já se sabe bem o fim.

Não há saída possível desse quadro sem mudança do contexto subjetivo, do arranjo valorativo predominante no grande grupo social - e isso só é possível por meio da educação no seu sentido mais amplo, orientada precipuamente para a formação do cidadão (aquele que vive a vida política e social da cidade) e não quase que exclusivamente, como se pode perceber atualmente, para a formação de técnicos acrílicos para o mercado. A verdadeira disputa não é direita x esquerda, mas sim ignorância x conhecimento - estamos vivendo uma luta civilizatória!

Enfim, prestemos atenção nos discursos e nas soluções que andamos defendendo ou aplaudindo: na barbárie ninguém está garantido, ninguém está seguro - inclusive você!

Isaac Luna

URL da foto ilustrativahttp://shogunidades.blogspot.com.br/2014/02/quando-impera-impunidade-so-nos-resta.html