domingo, 3 de setembro de 2017

O CASO DAS EJACULAÇÕES NOS ÔNIBUS: ENTRE O JUÍZO MORAL E JULGAMENTO JURÍDICO


I - OS FATOS E OS PROBLEMAS
No intervalo de uma semana três casos similares ganharam os noticiários brasileiros, todos com histórias envolvendo violência sexual ocorridas em transporte público e praticados de forma ardilosa. Um prato cheio para os julgamentos morais e aguçam o sentimento de impunidade prevalecente na opinião pública.
Com algumas poucas diferenças entre si, os casos tratam de homens que praticaram masturbação e ejacularam sobre passageiras que estavam em ônibus, sendo um caso em Sergipe[i], outro em São Paulo[ii] e um último no Rio de Janeiro[iii]. Atitude repugnante que causa indignação agride violentamente a vítima e provoca sentimento de solidariedade do grupo social traduzido em desejo de punição severa. O julgamento moral já está dado, publicado e transitado em julgado. Mas, e se ele não corresponder ao julgamento jurídico, o que deve ser feito? Deve o Direito render-se a moral?
As transgressões sexuais ocorridas no transporte coletivo e a sua transformação em enredo jornalístico provocam essa mistura entre juízos morais e juízos jurídicos. O problema é bem colocado pelo professor Lenio Streeck, nos seguintes termos: “Para resumir em pouquíssimas palavras o problema fulcral do Direito nos últimos dois séculos, é necessário fazer a seguinte pergunta: ‘o que fazer com a moral’” (p. 31)[iv].
Nesse breve artigo buscaremos, com auxilio de bibliografia especializada no assunto, propor algumas questões relevantes para o debate e compreensão da questão no âmbito do Direito Penal.

II – HÁ UMA MORAL SEXUAL CONSENSUAL E INTRANSPONÍVEL?
Sob uma perspectiva moral, predomina no seio social um discurso “contra toda forma de violência sexual”, o que, apesar de eticamente consistente, talvez não corresponda, empiricamente, a uma prática real de repúdio a toda forma de violência sexual, principalmente quando o ato ocorre contra mulheres, homossexuais, transexuais e pessoas ligadas à prostituição. A formação machista e patriarcal, traço perene da nossa história nacional, possibilita, ainda, a permanência de um campo valorativo que corrobora com a perspectiva da superioridade ou ascendência sexual do homem sobre a mulher, do homem heterossexual sobre o homem homossexual, do homem biológico sobre o homem transgênero, etc.
Nessa perspectiva, aceita-se, sem muito esforço de afrouxamento moral, a violência sexual praticada contra pessoas que estão “fora do dito padrão de normalidade” ou que, com o seu comportamento “imoral”, provocaram contra si mesmos a violência sofrida, sendo, portanto, uma vítima provocadora. Não são poucos os casos de violências sexuais sofridas por pessoas prostituídas, LGBT’s, garotas pobres, menores de 18 e até de 14 anos abusadas em troca de um punhado de dinheiro, garotas violentadas por amigos ou colegas em festas ou no interior de carros após elevado consumo de bebidas alcoólicas, etc. Essas e muitas outras formas de violência sexual são toleradas e até mesmo incentivadas na formação do varão, do jovem garoto que para mostrar a sua masculinidade não pode vacilar: se a “boyzinha” der bobeira, tem que pegar mesmo, afinal, “prendam as suas cabritas que o meu bode está solto”, para utilizar um antigo e conhecido bordão popular. A pouca repulsa social sobre casos com essas características citadas sugerem que a moral sexual predominante no seio social não seja tão conservadora como pode denotar a reação e os desejos de punição exemplar nos casos em comento nesse breve artigo, tema muito bem tratado por Isaac Sabbá Guimarães em seu livro-referência Direito Penal Sexual: Fundamentos e Fontes (p. 30-36)[v].
A midiatização dos fatos provoca comoção e leva a um debate isolado, já que graves violações sexuais ocorrem diariamente sem que o tema ganhe amplitude nos telejornais nem no interesse público. Os tribunais enfrentam diariamente questões referentes a violência sexual e o fazem com base legal. Mas, afinal, o que diz a lei sobre os fatos ocorridos nos ônibus?
Vamos, então, ao debate jurídico da questão!

III – UM CASO JURÍDICO-PENAL, UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS
Estando o debate dentro campo do Direito Penal, o seu tratamento está inexoravelmente vinculado aos princípios e regras constitucionais, bem como do Direito Penal e Processual Penal, aos quais recorremos, juntamente com a análise dos tipos penais, para chegar a uma compreensão jurídico-penal possível dos casos propostos.
Em primeiro lugar, imperioso relembrar que o Direito Penal rege-se inafastavelmente pelo princípio da legalidade estrita, do qual desdobram-se a exclusividade, a anterioridade e a taxatividade. Ferrajoli, já no início do seu Direito e Razão, aduz que a legalidade estrita tem como primeira condição a vinculação do juiz a lei, não podendo este “qualificar como delitos todos (ou somente) os fenômenos que considere imorais ou, em todo caso, merecedores de sanção, mas apenas (e todos) os que, independentemente de sua valoração, venham formalmente designados pela lei como pressupostos de uma pena”. A segunda condição, de acordo com o autor, seria “o caráter absoluto da reserva da lei penal, em virtude da qual a submissão do juiz é apenas a lei” (p. 38-39)[vi].
Nunca é demais lembrar que tais princípios são resultado de lenta evolução racional do Direito Penal, sendo um dos antídotos ao abuso de poder, aos fanatismos e juízos marias dos quais tão bem trata Cesare Bonesana no paradigmático Dos Delitos e das Penas[vii], livro de 1756 que sintetiza e introduz no Direito Penal o debate iluminista sobre o absolutismo e a desumanização do indivíduo.
Um das decorrências lógicas e necessárias da legalidade estrita é o princípio da taxatividade, sobretudo no que diz respeito às normas penais incriminadoras (aquelas que definem os tipos penais, ou seja: os crimes). Em seu esclarecedor livro Limites Constitucionais do Direito Penal, Leonardo Luiz de Figueiredo Costa lembra que “A exigência da lei para criação das normas penais seria inútil, se não fosse completada pela determinação de descrição específica do comportamento proibido e da delimitação da sanção penal cominada a conduta vedada, que se completam para a realização da vedação do arbítrio e da discricionariedade estatal” (p. 67)[viii].
Junta-se a esses a ideia de anterioridade, através da qual garante-se que qualquer indivíduo somente pode ser punido se a sua conduta estiver anteriormente (e taxativamente) descrita em uma lei válida e vigente, emanada do Estado através do processo legislativo definido na lei fundamental do País – Constituição Federal. A síntese desse arcabouço está no art. 1º do nosso Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Nem pena sem prévia cominação legal”.
Decorre também do movimento de limitação do poder punitivo do Estado o princípio da proporcionalidade das penas, devendo o juiz sopesar os fatos e proceder a dosimetria da pena observando a gravidade concreta do dano causado. A proporcionalidade tem o condão de impedir que fatos menos gravosos sejam punidos com penas mais elevadas e, a contrário senso, que fatos mais gravosos sejam punidos com penas mais amenas. Nos limites da pena em abstrato prevista para o crime praticado, o julgador deverá buscar aplicar uma pena em concreto que corresponda proporcionalmente ao dano provocado pelo agente, comparando, sempre que possível, com fatos similares para averiguar a razoabilidade da punição. É a proporcionalidade, como diz Francisco Dirceu Barros, o princípio que atua na proibição de excessos através de um juízo de razoabilidade (p. 14), evitando, assim, desequilíbrios e injustiças na aplicação da pena ao cidadão[ix].
Fechando esse primeiro campo, necessário para a análise jurídica dos casos propostos, temos, também como decorrência dos postulados acima tratados, a proibição de interpretação analógica da norma penal. Admitida em outros subsistemas do sistema (ordenamento) jurídico, máxime no direito civil, a interpretação por analogia busca suprir eventuais lacunas no ordenamento deixadas pelo legislador, permitido ao juiz dar uma solução jurídica ao caso em observância do “non liquet”, ou da inafastabilidade do controle jurisdicional do Estado (art. 5º, XXXV, da Constituição), que é a proibição dirigida ao Estado-Juiz de abster-se de julgar um litígio que lhe é apresentado pela alegação de ausência de lei específica para o caso. Já no Direito Penal, como aduz Cláudio Brandão, “A proibição da analogia é uma decorrência do princípio da legalidade. Se uma conduta não se amoldar perfeitamente ao modelo abstrato da ação ou omissão que a norma penal descreve, não é possível a aplicação da dita norma” (p.52)[x]. Em outras palavras podemos dizer que, se o fato concreto não estiver perfeitamente descrito na norma penal incriminadora, o chamaremos de fato atípico, sem possibilidade de se buscar outra norma no ordenamento para aplicar ao caso concreto.
Do exposto até o momento podemos concluir que:
a) a imposição (positivação) da lei penal é exclusiva do Estado (União); 
b) a lei penal incriminadora deve ser clara, objetiva e direta, descrevendo pormenorizadamente a conduta que quer incriminar; 
c) o juiz está completamente subordinado a lei, não podendo, em se tratando de Direito Penal, decidir nem além, nem aquém do que está descrito na norma; 
d) Ao julgar o caso concreto, o juiz deverá ater-se aos limites do que está formalmente descrito na norma, sendo defeso buscar solução diversa da prevista taxativamente na lei;
e) no cálculo (dosimetria) da pena, o julgador deve mensurar punição de modo a garantir que os caos mais gravosos recebam penas maiores e os fatos menos gravosos sejam punidos com penas menos gravosas.
Dito isto, vamos a análise dos fatos e dos tipos penais objeto da polêmica.

IV - ESTUPRO, VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE, ATO OBSCENO, IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR OU ESTUPRO DE VULNERÁVEL?
Caso1: Um homem foi preso na noite do domingo (27), acusado de mostrar seu pênis e ejacular em uma mulher dentro de um ônibus em Aracaju-SE. Levado a delegacia, o suspeito foi autuado pelo delito do art. 233 do Código Penal (ato Obsceno), com pena de 6 meses a 1 ano, sendo liberado em seguida, por tratar-se de crime de menor potencial ofensivo nos termos da lei 9.099/95 (pena menor que dois anos).
Caso 2: Homem ejacula no pescoço de uma mulher dentro de um ônibus em São Paulo no dia 30 de agosto. O agressor foi detido e levado a delegacia onde o delegado o atuou em flagrante delito pela prática da contravenção de Importunação Ofensiva ao Pudor - Lei das Contravenções Penais (3.688/1941, art. 61).
Caso 3: Um homem foi preso em flagrante, nesta quinta-feira (31/08) dentro da estação Mato Alto do BRT na zona oeste do Rio, após ejacular na perna de uma passageira que dormia em assento ao seu lado. O agressor foi encaminhado para a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Campo Grande e indiciado por Importunação Ofensiva ao Pudor.
Nos três casos, ocorridos num intervalo de cinco dias, temos o mesmo fato: um homem que ejacula sobre uma mulher dentro de um coletivo urbano. Os três casos causaram comoção pública e pressão popular os juízes, vez que em nenhum deles o acusado ficou preso ou foi indiciado pelo crime de Estupro, como reclama os programas da mídia televisiva, principalmente, e a “voz da opinião pública”. Enfim, estariam os três juízes equivocados, sendo complacentes ou instigando a impunidade nesses casos? Vamos, pois, a análise jurídico-penal da questão.
Para a solução jurídica do caso o juiz deverá buscar no ordenamento jurídico-penal vigente a norma que mais se adequa ao caso concreto. Comecemos pelo critério da exclusão, ou seja: eliminemos desde logo as normas que flagrantemente não se adequam ao caso.
- Assédio Sexual – art. 216-A do Código Penal: trata-se de norma penal de aplicação restrita aos casos de constrangimento por importunação (sem violência ou grave ameaça) ocorridos nas relações hierárquicas típicas do mundo do trabalho, derivadas de emprego, cargo ou função. Apesar de alguns veículos de imprensa tratar os casos como assédio, o que na tradução literal do verbete (assediar) no dicionário tem significado adequado para expressar a mensagem, no caso penal o tipo não corresponde ao fato, devendo, portanto, ser excluído.
- Violação Sexual Mediante Fraude – art. 215 do Código Penal: uma análise ampliada do tipo pode levar a compreensão de que ele solucionaria o caso, já que descreve a seguinte conduta: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. O professor doutor Afrânio Silva Jardim, por exemplo, fez analise na sua conta do Facebook, opinando pela aplicação do artigo 215 no caso concreto: “Desta forma, parece-me que a conduta tão debatida se enquadra na parte final do artigo 215 do Cod. Penal, pois a vítima estava impedida de manifestar a sua vontade em oposição ao ato a que estava sendo submetida.[xi]. Ocorre que o tipo penal trata da questão do consentimento da pratica sexual da ofendida mediante erro. Isso significa que a vítima, enganada quanto a identidade do agente (que pensava ser seu namorado, mas era o irmão gêmeo do mesmo), permite a prática sexual; ou quando uma paciente deixa-se tocar nas partes intimas por um médico acreditando que aquele ato faz parte do procedimento da sua consulta ou tratamento. O professor Afrânio fala da parte final do artigo, que diz haver também o crime se cometido por “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Porém, não se pode perder de vista que, na modalidade prevista no art. 215 a vítima consente o ato mediante o erro ou o engano, tratando-se, na verdade, como bem expõe Luiz Flavio Gomes, de verdadeiro “estelionato sexual” (p. 636)[xii]. O tipo, portanto, não parece adequado para a melhor solução do caso, devendo ser excluído pelo magistrado.
- Ato Obsceno – art. 233 do Código Penal: É crime de Ultraje Público que ofende a moral sexual média da coletividade. Nesse caso não há violência ou grave ameaça, pois o agente não pratica o ato contra uma pessoa determinada, mas em face da sociedade – são atos, em regra, de exibicionismo como a nudez pública ou a prática de atos sexuais em locais públicos, abertos ou expostos ao público, conforme lição de Rogério Sanches da Cunha (p. 280)[xiii]. Masturbar-se no ônibus é conduta típica adequada ao que dispõe a norma do artigo em comento, já que deveras ofensiva a moral sexual coletiva. O enquadramento do fato nesse dispositivo legal parece ser, do ponto de vista jurídico, adequado, ainda que se questione se suficiente diante “clamor público” (sobre essa questão indico o excelente livro de Marco Antonio Ferreira Lima e Ranieri Ferraz Nogueira, Prisões e Medidas Liberatórias, p. 81-93).
- Estupro – art. 213 do Código Penal: o Estupro é um crime de constrangimento ilegal específico, ou seja, com finalidade especial de prática de ato libidinosos para satisfação da lascívia. O legislador, ademais, definiu as formas específicas pelas quais o agente deve proceder o constrangimento em busca do fim desejado (conjunção carnal ou outro ato libidinoso), quais sejam: violência ou grave ameaça, nos termos do art. 146 do Código Penal (Constrangimento Ilegal), como muito bem colocado por Eneida Orbage de Brito Taquary (p. 53)[xiv]. Assim, o constrangimento do crime de Estupro não se confunde com o constrangimento do crime de Assédio Sexual, por exemplo, que se perfaz pela importunação, insistência inconveniente ou ameaças veladas relacionadas ao emprego, cargo ou função (não em relação a vida ou a integridade); também se diferencia da Violação Sexual do art. 215, que se dá mediante fralde ou outro meio que leve a vítima a consentir o ato por engano. No Estupro, a violência ou a grave ameaça de que trata a norma é contra a pessoa, sua integridade ou a sua vida – não há Estupro mediante fraude, engano ou ameaça de demissão do emprego.
Nos casos em exame temos que a vítima foi surpreendia pela ejaculação, não tendo sido submetida a violência ou grave ameaça prévia para consentir o ato. Atentos ao princípio da taxatividade e a vedação da analogia, difícil definir a conduta nos termos do art. 213 e, portanto, de indiciar o acusado pelo crime de Estupro. Em seu Crimes Contra a Dignidade Sexual, Guilherme de Souza Nucci lamenta que a ausência de um tipo intermediário entre o Estupro e a Importunação implique sempre no reconhecimento desse último (p. 60)[xv], já que não poderá o juiz, no caso concreto, aplicar a regra do art. 213 ausente a violência física real ou a grave ameaça, também chamada de violência ficta.
- Importunação Ofensiva ao Pudor – art. 61da Lei das Contravenções Penais (3.688/1941):  Como se deduz, não se trata de um crime, mas de uma contravenção penal que tutela o pudor público e individual, já que, diferentemente do crime de Ato Obsceno, refere-se ao ato de “importunar alguém”, ou seja, uma pessoa específica, desde que “em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”. Não parece ser a melhor solução para o caso, apresentando-se apenas como a menos ruim no campo das possibilidades – esse também é o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt, para quem a desproporcionalidade dos resultados impede a aplicação da norma do art. 213, restando ao julgador a contravenção do art. 61 da LCP para o caso (p. 50-51)[xvi].
Por fim, há também a questão que diz respeito ao que dispões o delito do art. 217-A, norma introduzida no nosso ordenamento pela Lei n. 12.015/09: Estupro de Vulnerável. Encontra-se no parágrafo único do referido artigo o reconhecimento do crime de Estupro de Vulnerável quando o ato for praticado contra pessoa que “por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A narrativa dos fatos trazida por matérias jornalísticas, a se confirmar nos autos do processo, dão conta de que as vítimas foram surpreendidas pela ejaculação, e nesse caso teriam sofrido uma intervenção física sem que tivessem possibilidade de manifestar-se sobre o consentimento ou não do ato.
A gravidade do fato e a inegável repulsa social que causa na coletividade levam ao desejo de interpretar a norma do art. 217-A como adequada para os casos. Entretanto, para configuração do crime exige-se que a vítima pratique algum ato ou permita que com ele se pratique libidinagem. Na espécie, estaríamos diante do tipo se o agente introduzisse os dedos na vagina da passageira que estava a dormir, ou, estando em pé a sua frente retirasse o pênis da roupa e o colocasse na boca da vítima, aproveitando-se do seu estado sonolento para obter dela, ainda que rapidamente, sexo oral, ou, ainda, se encontrando o agente uma passageira sob efeito de álcool no ônibus, utilizasse as mãos dela para praticar masturbação, ou a penetrasse vaginal, anal ou oralmente.

V – ALGUMAS ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES E SUGESTÃO DE SOLUÇÃO POSSÍVEL PARA O CASO
Analisar os fatos sob uma perspectiva jurídico-penal impõe a consideração obrigatória dos princípios e das regras que fundamentam e limitam o Direito Penal e, por conseguinte, o seu interprete e aplicador. Nessa oportunidade tratamos apenas de alguns desses princípios, os que consideramos imprescindíveis para se chegar a uma conclusão dos limites e alcances da norma penal para o caso concreto, foram eles: a reserva legal, a anterioridade, a taxatividade, a proporcionalidade e a proibição da analogia. Por essa perspectiva, não tinham os magistrados responsáveis pelos caso como aplicar a norma do art. 213 (Estupro), nem do 217-A (Estupro de Vulnerável) no caso concreto, como contundentemente reclama a opinião pública – que não tem obrigação de conhecer a técnica jurídica nem a dogmática penal.
Da forma como a legislação brasileira está posta sobre o tema, o magistrado fica entre os extremos: de um lado a condenação do acusado pelo estupro comum ou de vulnerável (penas mui severas), e por outro, a condenação no Ato Obsceno ou na contravenção de Importunação Ofensiva ao Pudor (penas demasiado leves). No conflito, como sabemos, impõe-se ao juiz a aplicação da norma mais favorável ao réu!
Tivéssemos entre nos a regra presente no Código Penal Português, todos esses casos poderiam receber uma retro emenda penal mais adequada, já que o Artigo 163 dos Patrícios, que trata da “Coacção sexual” (correspondente ao nosso Estupro), tipifica uma conduta intermediária no item 2 da descrição típica:
1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.
Enfim, não temos tal previsão entre nós e, para o bem do Estado Democrático de Direito e, por conseguinte, de um Direito Penal Democrático, somente uma alteração legislativa poderá autorizar juízes a dar ao caso solução diversa da que deram.
Enquanto ela não vem, penso que, para os casos analisados, seria adequado e possível o reconhecimento do concurso formal entre a contravenção do art. 61 e delito do art. 233 do Código Penal, já que, nos termos do art. 70 do Código Penal, o agente com uma só ação (masturbação), praticou dois crimes, sendo um contra o ultraje público e ou outro (ejaculação como exaurimento da conduta anterior) contra a vítima definida (importunação ofensiva), o que nos parece ser perfeitamente aplicável ao caso.
Os três casos que serviram de base para o que se expôs, bem como todos os similares que ocorrem frequentemente, são deploráveis e merecem a nossa mais forte reprovação. O caminho para buscar uma solução mais equânime para a questão pugnar por uma alteração legislativa, algo parecido com o que está previsto no Código Penal Português, permitido ao julgador ponderar melhor as penas diante da gravidade dos fatos. Mas, até lá, ou seja, até chegarmos a essa alteração, o que a norma vigente nos permite é essa tipificação.
De volta ao começo, penso ser bastante pertinente, para o desfecho dessa provocação ao debate, o alerta do professor Lenio Streeck sobre a questão, ou seja, sobre a tentação de corrigir o direito pela moral: “Sei que sempre fica a perplexidade acerca da relação Direito-Moral. Sempre somos tentados a corrigir as insuficiências ou as demasias do direito por nossas apreciações morais. Sempre é um bom teste. Coisas abjetas merecem castigo, todos sabemos. Mas, em direito penal, não podemos "forçar a barra", com analogias em prejuízo do réu”[xvii].
Por hora, e com as limitações de praxe, o exposto é o que posso ofertar para contribuir com o necessário debate.

REFERÊNCIAS CITADAS:



[i] Homem é agredido após ejacular em mulher dentro de ônibus. Disponível em: http://www.leiaja.com/noticias/2017/08/28/homem-e-agredido-apos-ejacular-em-mulher-dentro-de-onibus/ . Acesso em: 27/08/17.

[ii] Caso de ejaculação em ônibus não configura estupro, afirma juiz. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ejaculacao-em-onibus-nao-configura-estupro-afirma-juiz . Acesso em: 30/08/17.

[iii] Homem é preso ao ejacular na passageira em ônibus no Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.metrojornal.com.br/foco/2017/08/31/homem-e-preso-ao-ejacular-em-passageira-no-rio-de-janeiro.html . Acesso em: 01/09/17.

[iv] STREECK, Lenio Luiz. Luz, Câmera, Ação: A Espetacularização da Operação Lava-Jato no Caso Lula ou de Como o Direito Foi Predado Pela Moral. In:  MARTINS, Cristiano Zanin; MARTINS, Valeska Teixeira Zanin; VALIM, Rafael (coordenadores). O Caso Lula: A Luta pela Afirmação dos Direitos Fundamentais no Brasil. São Paulo: Contracorrente, 2017. p. 31-49.

[v] GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Direito Penal Sexual: Fundamentos e Fontes. Curitiba: Juruá, 2008.

[vi] FERRAJOLI, LUIGI. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

[vii] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. SãoPaulo: Martin Claret, 2005.

[viii] COSTA. Leonardo Luiz de Figueiredo. Limites Constitucionais do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

[ix] BARROS. Francisco Dirceu. Direito Penal Parte Geral. Rio de Janeiro, Elsevier, 2009.

[x] BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

[xi] JARDIM, Afrânio da Silva. OS CRIMES SEXUAIS NOS TRANSPORTES PÚBLICOS. É ESPANTOSO O DESPREPARO E A IRRESPONSABILIDADE DA NOSSA IMPRENSA. Disponível em: https://www.facebook.com/afraniojardim/posts/861555703993723 . Acesso em: 01/09/17.

[xii] PRADO. Luiz Régis. Comentários ao código Penal. 6ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

[xiii] CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal Parte Especial. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010 (Coleção Ciências Criminais, V. 3).

[xiv] TAQUARY, Eneida Orbage de Brito. Dos Crimes Contra os Costumes. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005.

[xv] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes Contra a Dignidade Sexual. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

[xvi] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Especial 4. 5 Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.