terça-feira, 13 de novembro de 2018

10 TÓPICOS PRELIMINARES PARA ANÁLISE PENAL DO ASSASSINATO DO JOGADOR DANIEL


1- Não temos acesso ao inquérito, portanto essa é uma análise em tese, de acordo com as informações disponíveis na mídia;

2- Trata-se de um homicídio com requintes de crueldade, envolvendo tortura e mutilação genital (art. 121, § 2º, III do Código Penal):

§ 2° Se o homicídio é cometido:
[...]
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
[...]
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

3- De acordo com trecho do depoimento de um dos envolvidos no crime, Eduardo da Silva, parece estarmos diante de um caso de progressão criminosa ou dolo progressivo, já que após a surra no interior da casa o jogador teria sido levado para lugar ermo onde seria decepado e deixado no local;

4- Durante o trajeto, ao tomar conhecimento de mensagens de WhatsApp enviadas pela vítima a amigos, na qual relatava ter “comido” a esposa do réu confesso, com fotos na cama deitado ao lado da mesma, teria o agressor decidido pela morte de Daniel;

5- A principal tese de defesa do acusado no caso é relacionada a motivação, ou seja: o crime teria ocorrido por motivo de relevante valor moral e/ou sob violenta emoção logo após injusta provocação da vítima, cabendo nesse caso, em tese, a minorante do art. 121, § 1º do Código Penal (tratado equivocadamente de “homicídio privilegiado”):

Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

6- Independentemente de se confirmar a tentativa de Estupro alegada pelo réu, que é muito difícil de ser demonstrada dado o grande teor alcoólico da vítima (O exame toxicológico feito no corpo de Daniel mostrou que ele estava com 13,4 decigramas de álcool por litro de sangue), a não confirmação das testemunhas da existência de gritos de socorro da esposa do réu, bem como o fato de parecer que a intenção da vítima era o de montar uma encenação para impressionar amigos), a divulgação de áudios, fotos e mensagens de texto da vítima possibilitam a arguição tanto do relevante valor moral, quanto da violenta emoção logo após injusta provocação;

7- Por tratar-se de crime doloso contra vida, o caso não será julgado por um juiz togado com conhecimento técnico e doutrinário da matéria, mas pelo conselho de sentença do Tribunal do Júri, formado por cidadãos sem formação jurídica mas que, nesses casos, são os juízes de fato da questão (art. 74, § 1º c/c 447 do Código de Processo Penal);

Art. 74.  A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.

§ 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º122parágrafo único123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados.        

Art. 447.  O Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento.   

8- Não fosse a vítima pessoa de notoriedade e o caso não tendo tomado proporções midiáticas, a chance de implicar essa tese seria bastante razoável. No atual contexto, pode também ser reconhecida, mas a pressão social impulsionada pela exposição televisiva dos fatos pode tornar mais difícil o trabalho do defensor;

9- Em razão dos depoimentos e das imagens das câmeras de um shopping que mostram o acusado “combinando” com com testemunhas e coautores a “versão oficial” dos fatos, a prisão preventiva do acusado deve ser mantida (arts. 312 e 313, I do Código de Processo Penal):

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.  

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:            

I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;     

10- Nada impede o reconhecimento do homicídio qualificado-privilegiado, justamente por tratar-se o tal privilégio, na verdade, de minorante penal e somente ser analisado/aplicado pelo magistrado na terceira fase da dosimetria da pena (art. 68 do Código Penal), diferentemente da qualificadora que é condição definida na primeira fase para fixação da pena-base:

Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento


Numa investigação criminal tudo pode acontecer. Esse breve raciocínio é baseado apenas nos elementos do inquérito revelado pela mídia, provavelmente apenas em parte. Vamos aguardar o desenrolar da persecução penal para conhecermos melhor a verdade real dos fatos!



 

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

PREPARAR, APONTAR, FOGO! SOBRE A LEGÍTIMA DEFESA PRESUMIDA, EXPANSÃO PENAL E JUSTIÇA DOS VENCEDORES.




1. PROVOCAÇÃO PRELIMINAR

            Quando estava na graduação do curso de Direito, por volta da segunda metade da década de 1990, fui apresentado a um pequeno livro de título O Caso dos Denunciantes Invejosos, cujo autor, Lon L. Fuller, já me era familiar por ser o mesmo do famoso “O Caso dos Exploradores de Caverna”, coqueluche de dez em cada dez calouros na graduação jurídica. Não vou entrar no mérito da discussão central do livro, mas apenas utilizar um conceito nele encontrado logo nas suas páginas introdutórias: “Siegerjustiz” – justiça dos vencedores, bem sintetizada na seguinte passagem:

Quando os Camisa-Púrpuras chegaram ao poder, não tomaram nenhuma providência no sentido de revogar a Constituição do país ou de reformar algumas de suas partes. Deixaram igualmente intactos o Código civil, o Código Penal e os códigos processuais. Tampouco foram tomadas providências oficiais para demitir funcionários públicos ou afastar juízes de seus cargos. [...] Ao Código Penal foram dadas interpretações perniciosas para garantir o encarceramento de adversários políticos. [...] O governo não respeitava as obrigações impostas pela Constituição, pelas antigas leis ou mesmo por suas próprias leis. [...].[i]

            Pois bem, a breve reflexão instigada pelo trecho citado do pequeno livro introdutório as Ciências Jurídicas servem como mote para a seguinte questão que animam as poucas linhas desse quase-artigo, dada a defesa do presidente eleito da legitima defesa presumida para os agentes de segurança pública e das recentes declarações do governador eleito do Rio de Janeiro sobre a autorização para que snipers executem pessoas portando armas de uso restrito:
a) No âmbito do sistema de garantias e compromissos amoldados pela Carta Política do País e Tratados e Convenções Internacionais das quais o Estado Brasileiro é signatário, é possível alterar a legislação para atribuir a agentes do Estado previamente definidos a prerrogativa de matar alguém fora de combate, garantindo-lhes uma excludente de ilicitude presumida?
b) Caso não seja possível tal alteração, poder-se-á modificar o entendimento de juízes e tribunais para que, mesmo com base na mesma legislação, se considere essa hipótese como de acordo com o ordenamento jurídico vigente?
            Antes de entrar em definitivo na questão proposta, cumpre salientar que o núcleo do problema aqui analisado se encontra situado no campo da política criminal e da sociologia jurídico-penal, o que não afasta a sua inserção na dogmática penal, como bem já exposto pelo professor Claus Roxin: “

...problemas político-criminais constituem conteúdo próprio também da teoria geral do delito. O próprio princípio nullum-crimen possui, ao lado da sua função liberal de proteção, a finalidade de fornecer diretrizes de comportamento; através disto, torna-se ele um significativo instrumento de regulação social.[ii]

            Delimitado o campo do debate e definido os pontos de partida, vamos aos fatos!

2. ORIGEM LEGISLATIVA DO DEBATE: PLS 352/2017

O Projeto de Lei 352 que tramita na Câmara Alta, de autoria do senador José Medeiros (PODE/MT), tem como escopo alterar o art. 25 do código Penal, criando

...presunção jurídica de legítima defesa de terceiros, ou legítima defesa da sociedade, quando o agente de segurança pública mata ou lesiona quem porta ilegalmente arma de fogo de uso restrito, representando perigo direto e iminente à integridade física das pessoas próximas.[iii]

A proposta é de inserir o parágrafo único no artigo 25, com uma redação bastante aberta, sem dar maiores detalhes ou especificar, taxativamente, os casos em que a ação do agente de segurança pública estaria albergada pela excludente. Vejamos o texto proposto: “Parágrafo único. A legítima defesa se presume quando o agente de segurança pública mata ou lesiona quem porta, ilegal e ostensivamente, arma de fogo de uso restrito.”
A proposta parece estar dentro do campo do que chamamos de “emergência penal” e, nesse caso mais especificamente, muito próximo de uma “legislação penal excepcional de guerra”, pois baseia-se numa das ramificações da escola penal funcionalista alemã, no Brasil estudada majoritariamente a partir das produções do jus filósofo Günther Jakobs e a sua teoria do Direito Penal do Inimigo, também chamada de Direito Penal de 3ª velocidade.
Para Jakobs o crime é uma conduta defeituosa do autor, onde este não observa a norma, violando o seu papel social, ou seja, aquilo que se espera do seu comportamento ou ação. A pena, nessa perspectiva, restabelece a validade da norma e tranquiliza a sociedade quanto a manutenção da configuração da sociedade ou das expectativas de comportamento, o que se amolda a teoria da prevenção geral positiva: negação da negação da norma.
            No que se refere aos sujeitos do crime, podem esses ser divididos em criminosos eventuais, criminosos habituais e criminosos profissionais. Diante dessa tripartição, para os primeiros haveria um Direito Penal do Cidadão, consubstanciado em normas gerais do Direito Penal, aparadas pelas garantias constitucionais e processuais, aplicáveis genericamente aos cidadãos (pessoas) de determinado país: O Direito penal do cidadão é, sobretudo, comunicação sobre a vigência da norma”.[iv]

            Quando o Estado, entretanto, estiver enfrentando os ditos criminosos profissionais ou habituais, haveria a justaposição de um subsistema penal diferenciado, com a consequente mitigação das garantias constitucionais dos apenados em nome da defesa social. Esse seria, então, um sistema normativo penal diferenciado, destinado aos inimigos da sociedade (não cidadãos), aqueles que atentam permanente e constantemente contra o Estado e contra a paz social.

Alexandre Rocha Almeida de Moraes entende que o direito penal do inimigo é fruto de uma crise paradigmática pela qual passa o Direito e a sociedade, podendo serem apontados como pontos observáveis dessa crise:
ü O aguçamento da complexidade social
ü A incerteza quanto aos riscos
ü A imprevisibilidade dos acontecimentos
ü A desconfiança em relação ao Estado
ü A sensação de insegurança
ü A instrumentalização do Direito Penal
ü Bem como a hipertrofia legislativa (novas áreas, novos tipos, antecipação da punição, flexibilização das garantias, elevação de penas, etc.).[v]
O pano de fundo que embasa essas concepções é a de que o desejo legítimo de toda a população de controle da violência somente se concretizará se o Estado, por meio do Sistema de Justiça Criminal, agir com mais violência ainda em face do suspeito ou do criminoso (real ou potencial), para intimidá-lo ou mesmo “retirá-lo definitivamente de circulação”, causando o imbróglio descrito por Callegari e Wermuth:

O Direito Penal novamente é visto como o único instrumento eficaz de psicologia político-social, como mecanismo de socialização e de civilização. Como consequência, verifica-se incontida expansão do seu âmbito de incidência.[vi]

            A proposta se apresenta demasiado vaga, pois não considera as inúmeras variáveis que se apresentam na prática. Por exemplo:
- A excludente abrange a hipótese de execução dos autores mediatos, mandantes e autores de escritório, ou somente se aplica a quem diretamente porta a arma, ainda que a mando, paga, orientação ou coação de terceiro?
- O agente de segurança pública, na hipótese de ter alguém portando arma em mira, ainda que esse sujeito armado esteja fora de combate, poderá abatê-lo por ato discricionário, ou dependerá de autorização de superior?
- Considere que após a execução do suspeito descubra-se que a arma estava desmuniciada; ainda assim prevalecera a excludente?
            Fica claro, dentro do já citado campo da emergência penal, que essa seria mais uma das hipóteses dos crimes chamados de perigo abstrato, ou seja: aquelas condutas cuja a periculosidade não precisa se apresentar como factível, como real no mundo dos fatos, bastando para a sua configuração a presunção legal/normativa de periculosidade. Tais normas tem se espalhado pelos ordenamentos jurídicos, mas no caso em exame, ela traz a possibilidade de extermínio da vida humana, o que, em juízo racional, não deve se dar por culpa presumida.
            Portanto, a aprovação de um projeto de lei que trata de questão relativa ao direito de um agente do Estado decidir sobre a vida ou a morte de um terceiro deve, necessariamente, passar por um longo e minucioso debate antes de ser levado a votação, já que sua natureza perpassa a mera alteração de um artigo de lei ordinária, como veremos a seguir.

3. O NÃO-DITO EVIDENTE: PARA ALÉM DO CÓDIGO PENAL

A questão que tem passado ao largo do debate, maquiada pela falsa ideia de que o Projeto de Lei trata de uma simples alteração do artigo 25 do Código Penal (que define as condições em que o agente da conduta que provoca a morte de alguém, por exemplo, estaria amparado pela Legítima Defesa), é a de que, na verdade, o PLS 352/2017 alveja de morte garantias constitucionais erguidas a condição de cláusulas pétreas, dispositivos constitucionais que não podem ser alterados ou retirados, ainda que por vontade de maiorias de ocasião ou interesses momentâneos, do texto constitucional.
A nossa atual Carta Magna, dita Constituição Cidadã, estabelece no seu artigo 5º (norma constitucional petrificada), dentre outras coisas: 
- A proibição de julgamentos ou tribunais de exceção (XXXVII);
- Vedação da pena de morte (XLVII, a);
- O direito a presunção de inocência (LVII);
- O contraditório e ampla defesa (LV);
- Garantia de que ninguém será julgado ou sentenciado senão pela autoridade competente (LIII).[vii]
Em uma primeira análise da questão, parece-nos que uma eventual autorização para um agente do Estado “abater” um indivíduo brasileiro amparado por um juízo de presunção, viola contundentemente todos os dispositivos constitucionais acima citados, pelo menos.
Nada obstante e pelo mesmo motivo, também e preciso salientar qua a ideia de inimigo, que em grande medida orienta parte do discurso dos que sustentam a tese de aprovação do PLS, não tem amparo constitucional. O artigo 5º da nossa Lei Maior estabelece claramente que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...].[viii]

Não é possível, portanto, sob uma perspectiva constitucional, legal ou democrática, separar a população brasileira entre cidadão e inimigos e, com base nisso, propor o extermínio desses últimos como solução para a crise da segurança pública.
É salutar considerar que não estamos em estado de guerra com outros países, nos defendendo de uma ameaça externa (um Estado democrático não pode declarar guerra contra seus próprios cidadãos!), mas mesmo se estivéssemos, estaríamos submetidos a Convenção de Genebra que compõe o nosso ordenamento jurídico com status de norma supralegal (Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993), também conhecida como “lei da guerra”, através da qual as partes em conflito estão comprometidas a atuarem dentro de alguns limites. O artigo 41 da Convenção estabelece, por exemplo, a proibição de atirar no inimigo fora de combate:

1. Nenhuma pessoa poderá ser objeto de ataque quando se reconheça ou, atendidas as circunstâncias, se deva reconhecer que está fora de combate.
2. Uma pessoa está fora de combate:
a) quando está em poder de uma Parte adversa; 
b) quando expressa claramente sua intenção de render-se; ou; 
c) quando está inconsciente ou de qualquer outra forma incapacitada em virtude de ferimentos ou doença e é, por conseguinte, incapaz de defender-se; e sempre que, em qualquer desses casos, abstém-se de todo ato hostil e não tenta evadir-se.[ix]

Como está colocado o PLS, autorizando o abate do cidadão suspeito inclusive a distância, ele viola até mesmo norma de guerra, o que não é sequer o nosso caso.
Esse tipo de mudança aventada somente pode ocorrer se for admitida a existência de um estado de exceção permanente em nosso País, uma suspensão de direitos e uma anormalidade democrática. É muito difícil fazer isso e dizer que vai tudo bem com a democracia, as instituições e que a Constituição continua sendo o documento jurídico-político que fundamenta e formata a existência do Estado Brasileiro. Nesse sentido, nos diz Zaffaroni:

Nossa tese é que o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como uma pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é compatível com um modo de Estado absoluto e que, consequentemente, as concessões do penalismo tem sido, definitivamente, obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de direito”.[x]

Há mais de três décadas, a propósito, estamos insistindo na criação de leis penais mais severas como estratégia para combater a criminalidade, reduzindo o debate da segurança pública a questões de política criminal e repressão policial. Qual tem sido o resultado disso até agora? Devemos aumentar a dose do “remédio amargo” até agora utilizado, ou será que o momento é de rever a prescrição e considerar outras formas de tratar o problema?

 4. O SOM AO REDOR

            Voltando ligeiramente a ideia de justiça dos vencedores:
 a) “Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim”[xi];
b) “A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo”[xii].
As frases foram ditas a imprensa, sem cortes ou constrangimentos, respectivamente pelo presidente da república e pelo governador eleito do Rio de Janeiro.
Não é novidade que o Direito Penal tenha sido sequestrado pelo discurso eleitoral de ocasião, quase sempre demagógico, para arrebatar o voto de uma opinião pública amedrontada pelas taxas de criminalidade e descrente da eficácia do poder protetivo do Estado. O quadro de “politização do Direito Penal” é muito bem explicitado por Callegari e Wermuth, citando Cedapa, definindo-o como:

...utilização política da noção de segurança, resultado de um empobrecimento ou simplificação do discurso político-criminal, que passa a ser orientado tão somente por campanhas eleitorais que oscilam ao sabor das demandas conjunturais midiáticas e populistas, em detrimento de programas efetivamente emancipatórios.[xiii]

            O alerta também é feito por Zaffaroni:

“...o poder punitivo na América latina é exercido mediante medidas de contenção para suspeitos perigosos, ou seja, trata-se na prática, de um direito penal de periculosidade presumida, que é a base para a imposição de pena sem sentença condenatória formal...”

Dado “o som ao redor”, consideremos a hipótese de que o PLS seja aprovado e de que, a posteriori, o STF reconheça a sua constitucionalidade, assegurando que não viola nenhum direito ou garantia constitucional, restará as seguintes questões: quem será abatido? São de fato esses indivíduos “abatíveis” que dão sustentação a violência e a criminalidade em nossa sociedade?
Como hipótese talvez seja possível também se arguir que tal ímpeto de abatimento de suspeitos só se manifestará em áreas sociais muito específicas, geralmente lugares nos quais o Estado Brasileiro não chega com políticas públicas garantidoras de direitos, mas apenas com a sua força coercitiva. Principalmente em tais lugares e condições crianças e jovens são facilmente cooptadas pelo crime e certamente serão usados como transportadores ou portadores de armas. Quantas delas deverão ser abatidas em nome da construção de uma sociedade melhor? Quantos indivíduos inocentes confundidos presumidamente com bandidos deverão ser exterminados para garantir a “paz social”?
Atente-se para o que denuncia a professora Vera Regina Pereira de Andrade:

O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que contra certas condutas legalmente definidas como crime e acende as suas luzes sobre o seu passado para julgar no futuro o fato-crime presente, priorizando a especulação de quem em detrimento do que. De modo que a gravidade da conduta criminal não é, por si só, condição suficiente deste processo, pois os grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase total impunidade das próprias condutas criminosas.[xiv]

Quando um agente estatal atira em um indivíduo pelo simples fato dele portar uma arma, ainda que não haja combate (é isso que o PLS prevê), a consequência causada é em regra irreversível, seja por uma lesão que inutilize membros ou sentidos, ou mesmo que provoque a morte. De que forma nos reconheceremos como sociedade quando os abatidos ou mutilados não forem “inimigos perigosos” como presumido? O “combate a criminalidade” justifica o extermínio de alguns inocentes? Quantos?
ATENÇÃO! Lembremos que a mudança, caso ocorra, será no Código Penal vigente, ou seja, válido para todos os casos e permanentemente, por ter caráter de lei geral e não temporária ou excepcional!
Em resumo: sua aprovação não só banaliza, mais ainda, naturaliza a execução sumária em nosso país.

5. O QUE HÁ NO HORIZONTE?

Difícil prever isso com as incertezas e conturbações do momento atual. Entretanto, mesmo que o PSL seja aprovado no Congresso - e há uma chance razoável de ser diante da instrumentalização eleitoral do tema,- ainda precisará passar pelo crivo do STF acerca da sua constitucionalidade.
De todo modo, nas limitações do atual estágio de capacidade de compreensão da realidade, é possível pelo menos dizer que não se faz uma sociedade melhor apostando na diminuição de direitos, na normalização de leis de exceção e na naturalização do extermínio de nacionais pelo próprio Estado.
Acreditar que essas coisas são boas ou desejáveis parece, pelo menos em um juízo minimamente republicano, democrático, racional e humanista, sinal de que precisamos, com as devidas cautela, responsabilidade e urgência que a questão exige, refletir sobre o nosso atual estágio civilizatório.
É muito difícil acreditar que a diminuição de diretos e garantias do indivíduo e aumento do poder punitivo do Estado, inclusive com entrega de uma carta-branca a agentes estatais para abater cidadãos presumidos perigosos, possa resultar em algo estruturalmente melhor para a sociedade - isso se estamos considerando que tal debate se dá no campo do republicanismo, do constitucionalismo e da democracia.
Por fim, para não dizer que não falei do “cara”, tomo de assalto a conclusão dele, como se minha fosse:

De todo o que acaba de ser exposto pode-se deduzir um teorema geral de muita utilidade, porém pouco conforme ao uso, que é o legislador comum dos países: É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcional ao delito e determinada pela lei.[xv]

            Que Themis, filha de Urano, esposa de Zeus e deusa da Justiça, nos proteja.



*Isaac de Luna Ribeiro é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Ciência Política pela UNICAP, professor de Direito Penal e Direitos Humanos do Centro Universitário dos Guararapes e de Criminologia das pós-graduações do IBCJUS, da ESA/OAB-PE e da UniFG. É advogado criminalista militante.



REFERÊNCIAS:

[i] DIMOULIS, Dimitri. O Caso dos Denunciantes Invejosos: Introdução prática às relações entre direito, moral e justiça. 12ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 28.
[ii] ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. (Tradução de Luiz Greco). Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 14-15.
[iii] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 352, dE 2017. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7204440&disposition=inline. Acesso em: 03/11/2018.
[iv] JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. (Introdução de Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de Oliveira). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 05.
[v] MORAES, Alexandre Rocha de Almeida. Direito Penal do Inimigo: A Terceira Velocidade do Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2008. Passim.
[vi] CALLEGARI. André Luis; WERMUTH, Miguel Ângelo Dezordi. Sistema Penal e Política Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 09.
[vii] PLANALTO FEDERAL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 03/11/18
[viii] Idem.
[ix] DECRETO Nº 849, DE 25 DE JUNHO DE 1993, Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm. Acesso em: 03/11/18.
[x] ZAFFARONI, Eugênio Raul. O Inimigo no Direito Penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007 (Coleção Pensamento Criminológico, n. 14). p. 12.
[xi]UOL NOTÍCIAS. Bolsonaro diz que quer dar "carta branca" para PM matar em serviço. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/12/14/bolsonaro-diz-que-quer-dar-carta-branca-para-pm-matar-em-servico.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 02/11/2018.
[xii] 'UOL NOTÍCIAS. A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo', afirma Wilson Witzel. Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2018/11/01/a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo-afirma-wilson-witzel.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 02/11/2018.
[xiii] CALLEGARI. André Luis; WERMUTH, Miguel Ângelo Dezordi. Sistema Penal e Política Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 20.
[xiv] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 52.
[xv] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2007. P. 111-112.

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