sábado, 3 de junho de 2017

ENTRE FOGOS E TIROS, TRADIÇÃO E VIOLÊNCIA: O DILEMA DO GOVERNO DE PERNAMBUCO NO SÃO JOÃO 2017.




A mais nova polêmica que envolve a política de segurança pública do Estado de Pernambuco, também conhecida como Pacto Pela Vida, foi gerada por uma portaria da Secretaria de Defesa Social (SDS) com regras para disciplinar os horários de atuação do efetivo policial durante os festejos juninos. A medida foi noticiada nesta sexta-feira pela Folha de São Paulo como “toque de recolher” nos festejos juninos [1], provocando imediatamente reações, explicações e debate.

A questão ganha contornos de grande relevância, pois envolve a mais tradicional festa do Nordeste e de Pernambuco em um momento em que o drama da violência urbana alardeia toda a sociedade, de canto a canto do Estado. É como se fosse uma reedição do velho dilema dos autores contratualistas dos séculos XVI e XVII: liberdade X segurança ou, nos termos da questão do momento – tradição X violência.

Vamos a questão:

Pernambuco, conhecido mundo a fora pela sua forte tradição cultural e por promover o “maior São João do mundo”, ficou também conhecido no início dessa década pelo sucesso da sua política de segurança pública no combate a violência, principalmente o seu grande impacto nos chamados CVLI’s – crimes violentos letais intencionais, chegando a receber reconhecimento e prêmios internacionais pelos resultados apresentados [2].

A produção de grandes festas e a tradição junina continua a todo vapor, mas desde a virada da primeira metade da década em andamento a segurança pública do Estado vem ocupando manchetes por motivos menos animadores: os últimos três anos apresentam números que em nada lembram o PPV premiado, festejado e indicado como  modelo a ser seguido [3] no combate a criminalidade: a violência explodiu na terra do São João!

A situação se torna dramática por estar sendo colocada em um momento em que depois de muito tempo a escalada da linha da criminalidade parou de crescer e o Governo do Estado começa a reestruturar as estratégias de atuação no combate a violência. Segundo os números apresentados no último dia 15/05 pela própria SDS, a taxa de homicídios teve um decréscimo de 6,4% no mês de abril em relação ao mês de março e a taxa de elucidação dos crimes subiu de 18% para 55,5% [4]. Ainda em abril o governo já havia anunciado a contratação de 4.500 novos policiais para reforçar o efetivo [5], bem como um investimento de 280,9 milhões em segurança pública para os próximos dois anos [6].
A expectativa, portanto, é que esse conjunto de medidas, ainda que restritas a apenas um dos eixos do PPV, que é a repressão qualificada, possa impactar positivamente nos números, o que somente ocorrerá se o decréscimo apresentado nos números de abril pelo menos se mantiverem nos meses seguintes do ano (considerando que a necessidade e o cenário ideal é de aumento na redução).

O drama está nesse ponto, já que períodos festivos de longa duração tendem a pressionar para cima as taxas de crimes violentos, basta analisarmos o caso do carnaval de 2017 [7] ou do mês de junho de 2016 [8]. É isso que está em jogo: uma interrupção de números positivos nesse momento podem desacreditar os esforços e estratégias do governo traçados para reavivar o Pacto Pela Vida, que conta hoje com a descrença de parte razoável da população.

Ordenar e disciplinar festas públicas, aliás, não é nada de novo, alguns municípios, dos quais Jaboatão dos Guararapes, segunda maior cidade do Estado com aproximadamente 700 mil habitantes pode ser um exemplo, pois participa desde 2009 de acordos com o Ministério Público e os comandos das polícias para encerrar as suas festas às 00:00hr, regra flexibilizada apenas no réveillon. As estatísticas mostram que quanto mais se estende pela madrugada a festividade, com o maior consumo de bebida alcoólica ou outras substâncias entorpecentes e maior dispersão de público em horários diversos, maior também é a probabilidade de aumento das ocorrências de crimes violentos.

Diante da polêmica, tanto o secretário de defesa social, Angelo Gioia [9], quanto o governador do Estado, Paulo Câmara [10], foram à mídia esclarecer que o decreto não estabelece o dito “toque de recolher”, mas busca apenas disciplinar o horário das festas para garantir o planejamento da polícia na garantia da segurança nos arraiais Estado a dentro. Ambos garantiram que a tradição dos grandes arraiais, sobretudo nas datas comemorativas específicas, serão tratadas dentro da compreensão das suas peculiaridades e da força das suas tradições, ou seja: os seus horários serão preservados no limite para garantir a tradição cultural pernambucana.

Enfim, excetuando-se as soluções em tese perfeitas, improváveis no atual cenário socioeconômico e político do País e de Pernambuco, o governo – e a população – encontram-se envoltos no complexo dilema que está no título dessa rápida análise: entre fogos e tiros, tradição e violência.

E você, o que pensa sobre essa questão?

Viva São João!
Isaac Luna

Para conferir e ver detalhes das informações do texto:

*Foto ilustrativa retirada da matéria da Folha de São Paulo - Nota n. 1 supra.


quinta-feira, 1 de junho de 2017

DIRETAS OU INDIRETAS: DE QUE DEMOCRACIA ESTAMOS FALANDO?



O debate atual sobre eleições diretas ou indiretas no caso da saída de Temer nos remete a uma pergunta que não é nova, mas continua central: a democracia que buscamos deve ser de caráter representativo ou participativo?

Dois dos principais pensadores da teoria política clássica, John Locke e Jean-Jacques Rousseau são referências desses modelos.

Para Locke [1], a democracia se aperfeiçoa na legítima representação pelo parlamento dos interesses da coletividade. É um autêntico parlamentarista envolto em uma tenaz disputa entre a monarquia e a nascente burguesia inglesa que surgia e se consolidava na Inglaterra no século XVII. A sua posição é claramente favorável ao poder político parlamentar em contraposição ao poder político monárquico, de modo que para ele a população deveria escolher livremente um grupo de cidadãos que a representaria politicamente no parlamento, legislando em nome do interesse comum. Uma vez eleito o parlamentar estaria legitimado, por delegação, a legislar, ainda que, amiúde, em desacordo com a vontade popular. O direito de insurgência seria legítimo apenas quando o legislativo deixasse de cumprir os fins para os quais foi eleito ou ofendesse as leis naturais, atentando contra a propriedade, a liberdade, a vida, etc. A esse modelo chamamos democracia representativa.

Rousseau [2], por seu turno, defendia que a soberania não pertencia ao parlamento, mas sim ao povo, de sorte que apenas o povo estava legitimado a decidir o seu próprio destino através da chamada vontade geral (interesses comuns), em contraposição à vontade de todos (soma dos interesses privados de cada um). A soberania popular é irrenunciável, e em assim sendo, não pode ser transferida para o parlamento.

A vontade geral seria portanto o limite da representação, considerada a impossibilidade de estar constantemente o corpo social reunido para decidir. Isso significa que o representante não está legitimado para decidir em nome do povo pela mera delegação do poder que lhe foi atribuído, mas, ao contrário, só estará legitimado na medida em que decidir tal qual os representados decidiriam se estivessem reunidos para decidir. A legitimidade, assim, não é uma condição dada, mas está em constante construção, em constante legitimação.

A nossa Constituição de 88 é majoritariamente “lockeana”, ou seja, voltada para a tese do poder delegado. A brecha aberta para o modelo de Rousseau está no parágrafo único do artigo primeiro, quando se define que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" [3]. O problema é que este é justamente o dispositivo constitucional que é atacado pelos opositores da democracia participativa de matriz “roussoreana”, vez que veem no parlamento brasileiro uma legitimidade automática dada por delegação, não mais sendo passível de ser contestada – é a ideia de legitimidade pensada pelo viés estritamente formalista e normativista, desconsiderando o seu conteúdo material.

O professor Paulo Bonavides já alertava no seu emblemático livro "Teoria Constitucional da Democracia Participativa" [4] que os instrumentos de participação popular nas decisões políticas do país, embora previstos na Carta Magna (plebiscito, referendo e iniciativa popular) [5] são sempre desprezados e escamoteados em nome do monopólio do poder decisório do Congresso.

A questão atual, portanto, não difere, na sua essência, do debate levado a cabo pelos pensadores contratualistas e iluministas: quem deve decidir as questões cruciais de interesse comum, o conjunto do povo ou um pequeno grupo legitimado por delegação para decidir em seu nome?

Você confia que os representantes do povo irão decidir tal qual o povo decidiria se estivesse em seu lugar, ou é melhor não confiar e devolver ao conjunto da sociedade a soberania e, por via de consequência, o direito de decidir o seu próprio destino?

Responda objetivamente, sem indiretas!

isaac Luna

[1] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2004 (Coleção Obra Prima de Cada Autor).

[2] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e Outros Escritos. São Paulo: Cultrix, 1999.

[3] CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição .

[4] BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. 2 ed. São Paulo: Melheiros, 2003.

[5] CAPÍTULO IV - DOS DIREITOS POLÍTICOS
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;

III - iniciativa popular.