A
criminalidade violenta tende a ser um problema maior quanto mais ela atinge
setores da sociedade que tem poder de pressão sobre os governos, ou seja,
quando passa a ser um problema palpável também para os incluídos.
As
mortes violentas em Pernambuco, no que pese o absurdo dos números, atingem em
regra e historicamente pessoas de extratos sociais menos abastados, não
detentoras dessa capacidade comunicativa de denúncia, cobrança e articulação
social, muitas vezes por ausência de acesso aos meios de comunicação social de
massa e as instituições oficiais do Estado. A pressão sobre o governo,
portanto, ocorre em níveis suportáveis e controláveis.
Se a violência percebida no Estado
ocorresse de forma menos concentrada e atingisse em números regulares espaços
geográficos e grupos socioeconômicos mais próximos a classe média nos bairros
mais tradicionais e urbanizados, já estaríamos vivenciando um estágio de
convulsão social agudo com os números existentes.
Quando
decidi escrever esse post lembrei
imediatamente de um trecho da introdução de um pequeno grandioso livro do
professor Luciano Oliveira, de quem fui orientando no mestrado, intitulado Do Nunca Mais ao Eterno retorno: Uma
Reflexão Sobre a Tortura (1), no qual o autor traz ao debate o Capitão
Segura, figura dos tempos ditatoriais da Cuba de Fulgencio Batista, que dizia
estarem equivocados os que pensavam que a sociedade era dividida entre
opressores e oprimidos, sendo a verdadeira divisão aquela que ocorre entre duas
classes: “a dos torturáveis e dos não
torturáveis”. Algo parecido, nos
termos do jus-filósofo italiano Giorgio Agamben, com o "homo sacer",
figura do direito Penal arcaico do império romano que definia aquele que podia
ser morto por qualquer um sem consequência jurídica (2).
Seguindo
o mote inicial, temos que quando a criminalidade mais crua começa a atingir o
grupo social historicamente menos vulnerável a sua manifestação violenta
direta, principalmente com homicídios, latrocínios, roubo com uso de arma de
fogo, estupros etc., a tendência é que a sensação de insegurança e a
intolerância a episódios corriqueiros passem a ser acentuados. Não é necessariamente o aumento das taxas
de criminalidade, violência, crueldade, banalidade ou torpeza que a
caracteriza, mas fundamentalmente uma mudança no perfil da vítima. Dito de
outra forma: quanto mais a criminalidade
violenta se movimenta das margens para o centro, das encostas para o asfalto ou
da comunidade para o bairro, maior será a pressão social sobre os governos para
uma atuação mais efetiva e resolutiva sob a questão.
Essa
diferença entre sensação de insegurança e probabilidade real de ser vítima de
um evento violento é extraordinariamente bem tratada e demonstrada numa obra
monumental de Danel Míguez e Alejandro Isla, doutores
em Sociologia e Antropologia, respectivamente, intitulada Entre La Inseguridad e el Temor Instatáneas de la Sociedad Actual (3). Para os professores da
Universidade Nacional de Buenos Aires, vários fatores, para além da ocorrência
do crime em si, concorrem para que se propague a sensação de insegurança no
seio social, dentre eles a atuação da mídia na forma e na frequência da
divulgação das ocorrências, bem como a confiança da população no sistema de
justiça criminal do Estado capaz de fazer frente a investida da criminalidade,
notadamente as corporações policiais, a atuação do Poder Judiciário e as
agências e instituições estatais encarregadas de promover políticas públicas de
prevenção e controle da criminalidade. Nas palavras dos autores: “Aquilo que faz com que uma pessoa esteja
exposta a ser vítima de um delito não coincide exatamente com o que faz que
tenha temor de enfrentar essa situação. Ou seja, a probabilidade real de alguém
ser vítima não determina por si mesma a intensidade da sensação de que a
qualquer momento poderá sê-lo” (p. 14 – tradução livre).
Nesse
sentido, percebemos que nos últimos dias Pernambuco vem vivendo episódios de
violência explícita que colocam na cena do crime, na condição de vítimas,
estudantes (4) e professores universitários (5), profissionais liberais
(6), comerciantes, religiosos (7),
enfim, um grupo não convencional de vítimas de crimes violentos, em ações
que ocorrem em área mais urbanizadas das cidades, em tese mais seguras.
Nesse
contexto, ainda que o governo do estado apresente números com eventual
diminuição de indicadores específicos, principalmente de CVLI's (Crimes
Violentos Letais Intencionais), a sensação de insegurança dificilmente será
arrefecida, pois estará sendo propagada por setores sociais com muito mais
potencial de publicizá-la, seja nas redes sociais, na mídia tradicional ou nos
ambientes institucionalizados da sociedade com maior capacidade de influenciar
a opinião pública.
Se o exposto tem coerência fática,
segue-se a seguinte hipótese: ainda que os números caiam, a pressão sobre o
Governo e a sua política de segurança pública tendem a, inversamente, subir.
Vamos
observar e aguardar os acontecimentos dos próximos dias.
Isaac Luna
REFERÊNCIAS CITADAS NO TEXTO
(1)
OLIVEIRA,
Luciano. Do
Nunca Mais ao Eterno retorno: Uma Reflexão Sobre a Tortura. São Paulo:
Brasiliense, 1994 (Coleção Tudo é História, n. 149)
(2)
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder
soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010
(3)
MÍGUEZ, Danel; ISLA, Alejandro. Entre La
Inseguridad e el Temor Instatáneas de la Sociedad Actual. Buenos Aires:
Paidós, 2010 (Temas Sociales n. 63)
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