O debate atual sobre eleições diretas ou
indiretas no caso da saída de Temer nos remete a uma pergunta que não é nova,
mas continua central: a democracia que buscamos deve ser de caráter
representativo ou participativo?
Dois dos principais pensadores da teoria
política clássica, John Locke e Jean-Jacques Rousseau são referências desses modelos.
Para Locke [1], a democracia se
aperfeiçoa na legítima representação pelo parlamento dos interesses da
coletividade. É um autêntico parlamentarista envolto em uma tenaz disputa entre
a monarquia e a nascente burguesia inglesa que surgia e se consolidava na
Inglaterra no século XVII. A sua posição é claramente favorável ao poder
político parlamentar em contraposição ao poder político monárquico, de modo que
para ele a população deveria escolher livremente um grupo de cidadãos que a
representaria politicamente no parlamento, legislando em nome do interesse
comum. Uma vez eleito o parlamentar estaria legitimado, por delegação, a
legislar, ainda que, amiúde, em desacordo com a vontade popular. O direito de insurgência
seria legítimo apenas quando o legislativo deixasse de cumprir os fins para os
quais foi eleito ou ofendesse as leis naturais, atentando contra a propriedade,
a liberdade, a vida, etc. A esse modelo chamamos democracia representativa.
Rousseau [2], por seu turno, defendia
que a soberania não pertencia ao parlamento, mas sim ao povo, de sorte que
apenas o povo estava legitimado a decidir o seu próprio destino através da
chamada vontade geral (interesses comuns), em contraposição à vontade de todos
(soma dos interesses privados de cada um). A soberania popular é irrenunciável,
e em assim sendo, não pode ser transferida para o parlamento.
A vontade geral seria portanto o limite
da representação, considerada a impossibilidade de estar constantemente o corpo
social reunido para decidir. Isso significa que o representante não está
legitimado para decidir em nome do povo pela mera delegação do poder que lhe
foi atribuído, mas, ao contrário, só estará legitimado na medida em que decidir
tal qual os representados decidiriam se estivessem reunidos para decidir. A
legitimidade, assim, não é uma condição dada, mas está em constante construção, em constante legitimação.
A nossa Constituição de 88 é majoritariamente
“lockeana”, ou seja, voltada para a tese do poder delegado. A brecha aberta
para o modelo de Rousseau está no parágrafo único do artigo primeiro, quando
se define que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" [3].
O problema é que este é justamente o dispositivo constitucional que é atacado
pelos opositores da democracia participativa de matriz “roussoreana”, vez que
veem no parlamento brasileiro uma legitimidade automática dada por delegação,
não mais sendo passível de ser contestada – é a ideia de legitimidade pensada
pelo viés estritamente formalista e normativista, desconsiderando o seu conteúdo
material.
O professor Paulo Bonavides já alertava
no seu emblemático livro "Teoria Constitucional da Democracia
Participativa" [4] que os instrumentos de participação popular nas
decisões políticas do país, embora previstos na Carta Magna (plebiscito,
referendo e iniciativa popular) [5] são sempre desprezados e escamoteados em
nome do monopólio do poder decisório do Congresso.
A questão atual, portanto, não difere,
na sua essência, do debate levado a cabo pelos pensadores contratualistas e
iluministas: quem deve decidir as questões cruciais de interesse comum, o
conjunto do povo ou um pequeno grupo legitimado por delegação para decidir em
seu nome?
Você confia que os representantes do
povo irão decidir tal qual o povo decidiria se estivesse em seu lugar, ou é
melhor não confiar e devolver ao conjunto da sociedade a soberania e, por via
de consequência, o direito de decidir o seu próprio destino?
Responda objetivamente, sem indiretas!
isaac Luna
[1] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2004
(Coleção Obra Prima de Cada Autor).
[2] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e Outros Escritos.
São Paulo: Cultrix, 1999.
[3] CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Nós,
representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 1º A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo
único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição .
[4] BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia
Participativa. 2 ed. São Paulo: Melheiros, 2003.
[5] CAPÍTULO IV - DOS DIREITOS POLÍTICOS
Art. 14. A soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.
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