sábado, 14 de setembro de 2024

A ERA DOS ESPECIALISTAS DE OCASIÃO

O especialista de ocasião é aquela pessoa que, em regra, não trabalha na área em debate, não lê nada sobre o assunto e não participa de eventos acadêmicos ou profissionais que discutem o tema com as suas teias de conexões e implicações. Porém, munido do seu repertório sensorial e informações difusas, tem uma opinião firme sobre o assunto que está na pauta do debate social, seja ele qual for. Exemplos claros da atuação dos especialistas de ocasião pululam as redes, basta lembrar da quantidade de especialistas com opiniões certeiras apareceram na pandemia discutindo aspectos complexos de epidemiologia, imunização em massa e eficácia de medicamentos. Há, em qualquer rede ou grupo de whatsapp, dezenas, centenas e até milhares de especialistas sobre Venezuela ou sobre os conflitos Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, temas sensíveis de política externa e direito internacional, áreas bastante segmentadas dos conhecimentos produzidos nos estudos jurídicos e da Ciência Política.

Agora mesmo milhares de especialistas de ocasião estão discutindo nas redes o caso Deolane, expondo as suas opiniões seguras sobre critérios de decretação da prisão preventiva, concessão de medidas cautelares alternativas, organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Nas campanhas eleitorais em andamento o quadro é potencializado e de todos os cantos surgem especialistas em marketing, análise de cenário, estratégia e narrativa política.

O especialista de ocasião na verdade sempre existiu, mas o seu apogeu e estrelato é produto daquilo que o Andrew Keen vai chamar de culto ao amador, em livro com o mesmo título lançado no início do século, bem como do que a Universalidade de Oxford passou, desde 2016, a intitular de pós-verdade. No primeiro caso temos a internet como espaço no qual qualquer pessoa pode dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto, e no segundo a pré-disposição de aceitar acriticamente qualquer informação que confirme vontades, crenças, desejos e ideias pré-concebidas da realidade física (p.ex. terra plana) ou social (p.ex. o perigo do comunismo), ainda que não haja fatores objetivos que a conecte com a realidade fática.

Em qualquer caso, o fato é que, quando qualquer opinião pode ser entendida como verdade, a verdade deixa de existir. Do mesmo modo, quando todos são especialistas, não há mais especialistas. A tendência em um cenário como esses é a prevalecer em todos os temas a visão mediana e amadora, produto de opiniões construídas em grande medida por sentimentos, crenças desejos e pré-conceitos.

Bem medido e bem pesado, parece assistir razão a Eco que, em meados de 2015, disse que a grande novidade da era atual é que a internet e as redes sociais deram amplitude, visibilidade a voz a essa legião de mentes privilegiadas que de tudo sabem e sobre tudo opinam certeiramente. Saramago tem defendido que foram precisos mais de dois milênios para que o mito da caverna de Platão se tornasse, enfim, realidade nesse mundo das aparências que parece caracterizar a contemporaneidade.

De mais a mais, talvez o melhor resumo de tudo isso esteja lá no atualíssimo O Discurso do Método, publicado por Descartes em 1516: "O bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo, porque ninguém deseja ter mais do que possui".

Entre a certeza de nada saber sobre quase tudo e a ilusão de pouco saber sobre quase nada, ouço Witghinosting e calo-me platônicamente.

" A parte que ignoramos é muito maior que tudo quanto sabemos".